Nos bastidores da Segunda Guerra Mundial, Lisboa era uma cidade neutra, mas não inocente. Entre refugiados, contrabandistas, diplomatas e espiões, circulavam homens que não pertenciam a lado nenhum, movendo-se como peças ambíguas num tabuleiro de alianças incertas. Um deles, o mais fascinante de todos, chamava-se Dusko Popov — aristocrata sérvio, agente duplo britânico, e o homem [...]

Nos bastidores da Segunda Guerra Mundial, Lisboa era uma cidade neutra, mas não inocente. Entre refugiados, contrabandistas, diplomatas e espiões, circulavam homens que não pertenciam a lado nenhum, movendo-se como peças ambíguas num tabuleiro de alianças incertas. Um deles, o mais fascinante de todos, chamava-se Dusko Popov — aristocrata sérvio, agente duplo britânico, e o homem que, segundo o próprio Ian Fleming, inspiraria a personagem de James Bond.
A história de Popov em Portugal não é apenas uma curiosidade de espionagem. É o espelho de um tempo em que o nosso país, sob a neutralidade vigilante de Salazar, servia de ponte entre o mundo em guerra e o mundo em decadência. A Lisboa de 1940 não era apenas um porto de saída para quem fugia da Europa ocupada. Era também uma zona de contacto entre impérios, ideologias e interesses.
Popov chegou a Lisboa com uma missão: enganar os alemães e protegê-los dos seus próprios aliados. Entrava e saía do Hotel Palácio do Estoril, jogava roleta com agentes do Abwehr, frequentava os corredores do Hotel Aviz e mantinha reuniões discretas no Grémio Literário. Fingia estar ao serviço do Eixo, mas transmitia informações críticas para Londres — muitas delas enviadas directamente a um jovem oficial britânico de nome Ian Fleming, destacado para o Naval Intelligence Division e profundamente atento às personalidades que orbitavam entre o luxo e o abismo.
Foi em Lisboa que Fleming teve o primeiro vislumbre do espião como personagem de ficção. A imagem de Popov, sentado à mesa do Casino Estoril, enfrentando um alemão com dezenas de milhares de dólares apostados, sob olhar gélido e cigarro aceso, marcou-o profundamente. Foi esta cena — não inventada, mas vivida — que daria origem à abertura de Casino Royale, o primeiro romance da saga Bond. Mas Popov era mais do que um jogador refinado. Era um homem que arriscava a vida ao manter a confiança do Abwehr enquanto informava o MI5 e o MI6. Um agente duplo real, de carne, osso e contradição.
Em Portugal, o teatro da guerra era feito de silêncios. As conversas nos cafés eram vigiadas, os navios estavam sob escuta, os telefones interceptados. E no entanto, era aqui, neste ambiente rarefeito, que se decidiam movimentos de tropas, avanços diplomáticos e campanhas de propaganda. Popov compreendeu o papel estratégico de Portugal: um país que, não sendo protagonista, tornava-se palco de protagonistas. E foi esse palco que deu vida ao maior mito literário da espionagem moderna.
Bond, na pena de Fleming, não é um super-homem. É um homem perigoso, marcado pela violência, pela solidão, pela sedução e pela morte. Tem muito de britânico, mas nasceu de uma observação feita em Lisboa. Numa neutralidade que permitia todos os jogos, mesmo os mais sujos.
A nossa historiografia, tantas vezes virada para dentro e para os seus próprios fantasmas, esquece com frequência que Portugal foi, nos anos 40, uma encruzilhada global. A história de Popov obriga-nos a olhar para esse passado com menos provincianismo. A perceber que, mesmo sem tanques nas ruas ou bombardeios nos céus, fomos actores de uma guerra de sombras. E que dessas sombras nasceu uma lenda.
Não é por acaso que Casino Royale começa com um jogo no casino. Nem é coincidência que o espião mais célebre da cultura ocidental tenha o rosto — ou pelo menos o reflexo — de alguém que jogava em Estoril e jantava em Lisboa. Bond pode ter sido um agente britânico. Mas o seu baptismo literário foi português.
TEXTO.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor