Apesar de representar mais de 4% do PIB da União Europeia e empregar cerca de 8,7 milhões de pessoas, o setor cultural e criativo continua a beneficiar de apenas 0,2% do orçamento comunitário. Esta discrepância entre o seu peso económico, simbólico e político tem motivado uma crescente pressão por uma nova agenda cultural europeia — mais integrada, mais ambiciosa e verdadeiramente comprometida com os desafios do presente, num momento em que a Europa enfrenta obstáculos estruturais que se estendem desde a transição digital às ameaças à democracia.

Para responder a este desequilíbrio, a Comissão Europeia apresentou a “Cultural Compass”, que pretende funcionar como quadro estratégico comum para as políticas culturais da UE, promovendo maior coerência entre financiamento e ação política. Em paralelo, a iniciativa “Culture Deal for Europe” — liderada por redes como a Culture Action Europe, a Europa Nostra e a European Cultural Foundation — defende a alocação de 2% do próximo Quadro Financeiro Plurianual à cultura e a criação de uma política transversal que reconheça o setor como pilar da construção europeia.

Em Portugal, o cenário é semelhante. Estudos apontam que mais de dois terços dos profissionais da cultura trabalham sem condições laborais adequadas, e o acesso a financiamento continua disperso, com fragilidades na articulação entre políticas locais, nacionais e europeias.

É neste contexto que Catarina Vaz Pinto, administradora da European Cultural Foundation e antiga vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, em entrevista ao SAPO, reflete sobre este momento decisivo para a cultura europeia e sobre a necessidade urgente de políticas à altura do seu valor estratégico.

Tendo trabalhado tantos anos entre o terreno local e o plano europeu, sente que o discurso político sobre a cultura está a mudar ou continuamos a reconhecer o seu valor apenas no plano simbólico, sem verdadeiro compromisso político?

"Cultural Compass"

O "Cultural Compass" é uma nova iniciativa estratégica da Comissão Europeia que pretende colocar a cultura no centro das políticas públicas da União Europeia. Apresentado como um futuro quadro político comum, este “compasso” visa orientar e reforçar a ação cultural europeia de forma mais integrada, ambiciosa e alinhada com os desafios contemporâneos — como a transição digital, a crise climática, a coesão social ou a defesa da democracia. A iniciativa propõe-se melhorar as condições de trabalho no setor, proteger a liberdade artística, valorizar a diversidade cultural e garantir que a cultura tem um papel real na construção do projeto europeu. O documento está atualmente em fase de consulta pública e deverá ser formalmente apresentado até ao final de 2025, servindo como base para futuras políticas e investimentos culturais a nível europeu.

Acho que tem havido, progressivamente, um maior alinhamento entre o discurso e a prática. Ao nível das câmaras e das cidades, isso é bastante claro. Hoje, em geral, tanto grandes como pequenas cidades apostam fortemente na cultura e reconhecem-na como um verdadeiro pilar da sua atividade. A nível nacional e europeu, essa realidade já não é tão evidente, embora também se verifique um reconhecimento crescente da importância da cultura para criar um espírito de identidade e um sentimento de pertença à União Europeia.

O projeto europeu começou por ser essencialmente económico, tem-se vindo a afirmar como projeto político, mas não é verdadeiramente um projeto cultural. Só em 1992 é que a cultura entrou formalmente nos tratados, com a União Europeia a reconhecer que tinha competências — ainda que limitadas — nesta área. Desde então, tem havido um apoio crescente e um aumento dos financiamentos para a cultura, mas ainda são claramente insuficientes.

Neste momento, estamos num processo de negociação do novo Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia, que definirá o orçamento de 2028 a 2034. A Comissão deverá apresentar uma proposta brevemente. Paralelamente, a presidente da Comissão pediu ao Comissário Europeu que desenhasse uma bússola cultural — o “Cultural Compass” — que pretende ser uma nova abordagem estratégica para a cultura, dando-lhe coerência e centralidade no contexto das políticas europeias.

O setor reivindica que essa bússola seja acompanhada de um verdadeiro “Cultural Deal”, à semelhança do “Green Deal”, ou seja, que reforce a presença da cultura, com mais financiamento e alinhamento com as aspirações dos agentes culturais — desde o património às artes performativas.

"A cultura é essencial para reforçar a identidade europeia, criar valores partilhados e dar um rosto humano à Europa."

É curioso porque, mesmo ouvindo falar cada vez mais da importância da cultura enquanto pilar da identidade europeia, o setor ainda recebe apenas 0,2% do orçamento europeu. Como explica esta disparidade tão grande entre o discurso e o investimento real?

É uma questão com que me tenho confrontado ao longo da vida, em diferentes funções que desempenhei. Nas autarquias, por exemplo, a realidade é bastante diferente. Na Câmara de Lisboa, o orçamento para a cultura rondava os 4%. Em Barcelona, está entre os 4% e 5%. Ou seja, a nível local, há uma aposta mais clara e consistente.

Penso que continua a haver, por parte de muitos decisores políticos, uma dificuldade em compreender verdadeiramente o que está em causa quando se fala de cultura. Apesar de haver uma consciência crescente da sua importância, a cultura tornou-se também um campo de disputa. Num mundo tão polarizado como o atual, existe algum receio em abordar questões que podem ser vistas como divisivas, muitas vezes associadas à cultura.

Mas a cultura deve ser entendida como um direito fundamental — tal como o direito à habitação, à saúde ou à educação. Cada pessoa deveria ter o direito de participar na vida cultural da comunidade em que vive. Isso está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, ainda há dificuldade em materializar este princípio de forma consistente na sociedade.

Apesar disso, sobretudo a nível local, a cultura tem vindo a ganhar peso e reconhecimento. As cidades e os espaços de proximidade têm tido um papel fundamental nesse processo.

"A força das redes culturais e a sua capacidade de manter uma mensagem consistente ao longo do tempo mostra que o setor tem hoje uma maturidade estratégica que lhe permite lutar pelos seus objetivos."

Como referiu, a Comissão Europeia lançou recentemente o “Cultural Compass”. Esta iniciativa tem, na sua opinião, potencial para marcar uma viragem ou corre o risco de se diluir, como outros documentos de boas intenções?

"Cultural Deal for Europe"

O "Cultural Deal for Europe" é uma iniciativa lançada por organizações culturais europeias — como a Culture Action Europe, a European Cultural Foundation e a Europa Nostra — que defende uma integração real da cultura no centro das políticas da União Europeia. A proposta apela a que a cultura seja reconhecida como um pilar estratégico da construção europeia, à semelhança do que acontece com áreas como o ambiente ou a economia. Entre as principais reivindicações está a alocação de 2% do orçamento da UE ao setor cultural e patrimonial, bem como a criação de políticas transversais que envolvam a cultura em áreas como democracia, coesão social, sustentabilidade e inovação. O objetivo é garantir que a cultura deixa de ser vista apenas como expressão simbólica e passa a ter um papel estruturante e financeiramente apoiado na visão de futuro da Europa.

Acredito que há potencial para avanços. Uma das grandes reivindicações do setor é que a cultura atinja os 2% do orçamento comunitário — atualmente, como referiu, está nos 0,2%. Esse salto seria difícil, mas é fundamental estabelecer objetivos ambiciosos.

O “Cultural Deal” — que tem vindo a ser promovido por três instituições, a Culture Action Europe, Europa Nostra e a Fundação Cultural Europeia, da qual sou atualmente administradora — já tem resultados concretos. Esta rede surgiu em 2019, durante a negociação do anterior quadro financeiro, numa altura em que não havia nenhum comissário com a pasta da cultura. Graças ao trabalho de lobbying e advocacia, o Parlamento Europeu recusou aprovar o orçamento sem que a cultura fosse incluída como prioridade, e conseguiu-se duplicar o financiamento inicialmente previsto para esta área.

Esse esforço também garantiu que, no programa de recuperação e resiliência pós-COVID, os Estados-membros tivessem de alocar 2% do valor à cultura. E mais recentemente, no apoio à Ucrânia, foi igualmente incluída uma componente cultural. Estes são exemplos concretos de como a sociedade civil europeia — muitas vezes com o Parlamento Europeu como aliado — tem conseguido avanços.

Estamos agora numa fase decisiva de discussão e todos os esforços serão feitos para continuar esta luta. Num contexto de ascensão dos populismos, da direita e de crescente tensão geopolítica, os cidadãos europeus parecem cada vez mais conscientes da importância de uma Europa não só política e económica, mas também culturalmente forte.

A cultura é essencial para reforçar a identidade europeia, criar valores partilhados e dar um rosto humano à Europa. É através da cultura que se promove a ligação entre as pessoas — é esse o seu verdadeiro poder estruturante.

"A mudança vem tanto das macroestruturas como da ação do cidadão comum — através do seu voto, da sua participação, das suas escolhas."

Apesar de se reconhecer a importância simbólica da cultura, esta continua a ser tratada como o parente pobre das políticas orçamentais. E agora, com a Europa a incentivar um reforço da Defesa, não corremos o risco de ver a cultura ainda mais negligenciada?

Sim, esse risco existe. Há sempre um desajustamento entre o que se diz e o que se faz. Por isso é fundamental que os agentes culturais se mantenham unidos e com um discurso claro e coerente.

A força das redes culturais e a sua capacidade de manter uma mensagem consistente ao longo do tempo — como temos feito desde 2019 — mostra que o setor tem hoje uma maturidade estratégica que lhe permite lutar pelos seus objetivos.

Mas também é importante chegar às pessoas. O papel das autarquias, das cidades e dos espaços de proximidade é essencial, porque é aí que os projetos culturais se desenvolvem, transformam comunidades e tocam o quotidiano dos cidadãos.

A mudança vem tanto das macroestruturas como da ação do cidadão comum — através do seu voto, da sua participação, das suas escolhas. É nesse equilíbrio que devemos trabalhar. E hoje, talvez seja mais fácil começar por envolver as pessoas, até porque as redes sociais criam perceções muitas vezes dissociadas da realidade.

Tomemos o exemplo da imigração. A forma como lidamos uns com os outros constrói ou destrói pontes. A Europa é, por natureza, um mosaico de culturas. E hoje, com os movimentos migratórios, essa diversidade é ainda mais visível, especialmente nas cidades. Isso torna o desafio mais complexo, mas também mais urgente.

Acredito profundamente que a cultura pode ser um fator de divisão, mas também — e sobretudo — um elemento de conexão. Quando lemos um livro ou vamos a um concerto, criamos um sentido de partilha, de valores comuns, de formas de vida. É por aí que devemos seguir.

Falando agora de instrumentos concretos: o Programa Europa Criativa é uma das principais ferramentas da União Europeia para apoiar o setor cultural e criativo. Como é que vê o papel deste programa face aos desafios atuais?

Programa Europa Criativa

O programa Europa Criativa ("Creative Europe"), em vigor entre 2021 e 2027, é o principal instrumento da União Europeia para apoiar os setores cultural e criativo. Com um orçamento total de aproximadamente 2,44 mil milhões de euros — um aumento de cerca de 50 % face ao período anterior (2014–2020) — o programa visa salvaguardar, desenvolver e promover a diversidade cultural e linguística da Europa, bem como reforçar a competitividade e o potencial económico dos setores culturais e criativos, especialmente no setor audiovisual.

Está dividido em três vertentes: Cultura, que apoia áreas como as artes performativas, música, literatura e património; Media, focada no audiovisual europeu, incluindo cinema e conteúdos digitais; e uma vertente Transetorial, que promove a cooperação entre cultura, tecnologia e jornalismo independente.

Gerido pela Comissão Europeia e acessível a todos os Estados-Membros e países associados, o Europa Criativa apoia projetos de cooperação internacional, traduções literárias, coproduções audiovisuais, redes de circulação artística e iniciativas ligadas à inovação e à liberdade de expressão.

Uma das grandes questões em cima da mesa, neste momento, é precisamente a continuidade do Europa Criativa. Como este novo quadro financeiro europeu vai reorganizar vários programas, no sentido de os simplificar e de estabelecer linhas estratégicas mais claras, existe alguma incerteza sobre se o Europa Criativa continuará a existir enquanto programa autónomo. Ora, o texto inicial da proposta da Comissão indica que alguns programas vão manter-se independentes, e uma das principais reivindicações do setor cultural é, precisamente, que o Europa Criativa se mantenha tal como é. Trata-se de um programa especificamente dedicado à cultura e não podemos tratar a cultura como se fosse apenas mais uma área absorvida por outras. O setor cultural tem características muito próprias — na forma como cria, produz, trabalha — e, por isso, os modelos de financiamento mais genéricos muitas vezes não se ajustam à realidade concreta dos agentes culturais.

"O papel das autarquias, das cidades e dos espaços de proximidade é essencial, porque é aí que os projetos culturais se desenvolvem, transformam comunidades e tocam o quotidiano dos cidadãos."

Na sua visão, quais são os principais bloqueios que impedem que exista, de facto, uma política cultural europeia forte, transversal e ambiciosa?

O grande bloqueio continua a ser o reconhecimento político da cultura. A partir do momento em que esse reconhecimento acontecer — e pode implicar ou não uma nova revisão dos tratados da União —, será possível ambicionar outro tipo de estrutura. A evolução da própria UE e os sucessivos alargamentos têm levado a alterações dos tratados e, eventualmente, uma política cultural mais robusta poderá exigir também esse passo. Esse reconhecimento político traria consigo não só mais financiamento, mas também outros instrumentos, mais fortes, para concretizar objetivos estruturais.

A pandemia expôs de forma crua as fragilidades do setor cultural, nomeadamente a precariedade crónica dos profissionais da cultura. Porque é que, quase três anos e meio depois, tão pouco mudou?

A nível europeu, essa é uma área particularmente difícil de regular, porque o setor é composto maioritariamente por profissionais independentes e os sistemas legais, fiscais e de proteção social variam muito entre países. Criar um enquadramento comum é extremamente complexo. No entanto, há sinais de atenção ao tema. Por exemplo, na carta que a presidente da Comissão Europeia enviou ao Comissário para a Cultura — onde encomenda também o “Cultural Compass” — é pedida uma proposta específica para abordar as condições de trabalho dos artistas. E esta pressão só tende a aumentar, com temas como a inteligência artificial a agravar ainda mais a desvalorização — e até desmonetização — do trabalho artístico. Esta é uma questão que exige reflexão política, sim, mas também um esforço técnico e aprofundado, dada a fragmentação do setor.

Olhando para o contexto português, há críticas recorrentes à fraca articulação entre políticas culturais locais, nacionais e europeias, bem como ao excesso de burocracia em torno de muitos apoios. Onde é que vê as principais falhas? Há modelos que considere positivos?

Apesar de tudo, nos últimos anos tem havido algum esforço por parte do Estado Central em criar redes — de equipamentos, de instituições — e isso tem forçado também uma articulação mais próxima com as autarquias. Afinal, muitos desses equipamentos, teatros municipais, centros de arte, bibliotecas, estão sob gestão local. Ainda assim, o problema do reconhecimento político e da escassez de financiamento persiste a nível nacional, tal como a nível europeu. Acresce que nos últimos anos têm surgido novas formas de atuação no setor, que exigem outro tipo de financiamento. Falo, por exemplo, de projetos com forte participação cidadã, onde o público participa ativamente no desenho de programações ou até dos próprios equipamentos culturais. Também a ligação entre cultura e educação tem ganho peso, e nesse campo, o Plano Nacional das Artes tem tido um papel muito importante. Tudo isto obriga a olhar para a cultura como um setor em transformação e que precisa de recursos adequados às suas novas exigências.

"Cada pessoa deveria ter o direito de participar na vida cultural da comunidade em que vive. Isso está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos."

De que forma é que estas redes têm contribuído para reforçar a presença e a influência do setor cultural no contexto europeu?

As redes culturais europeias surgiram depois de a própria UE começar a intervir na área da cultura e têm sido fundamentais. São elas que agregam os agentes culturais — locais, regionais, nacionais — e lhes dão uma escala e massa crítica suficientes para ter voz junto das instituições europeias. A diversidade dos países europeus torna imperativa a existência de plataformas comuns, onde se possam encontrar valores partilhados e fazer reivindicações com mais força. Claro que é um setor muito fragmentado, com realidades muito distintas entre áreas: a forma de funcionamento das artes performativas não tem nada a ver com a do setor do livro, do cinema ou do audiovisual. Essa singularidade dificulta o trabalho político, porque não é fácil criar padrões comuns. Mas há uma visão comum possível — mesmo que, no detalhe e na prática, as coisas sejam exigentes. E é mesmo aí, no detalhe e na realidade, que a cultura acontece.

Vivemos tempos marcados por crises sucessivas — guerras, deslocações forçadas, emergência climática. Como pode a política cultural europeia responder a estes contextos sem cair na instrumentalização simbólica da cultura?

As alterações climáticas e a transição digital têm, por si só, impacto direto no setor cultural. Mudam a forma como se cria, como se produz, como se divulga e como se acede à cultura. O setor tem de se adaptar a estas transformações. Por isso, é essencial que também nas estratégias de apoio à transição digital e climática o setor cultural esteja envolvido — não apenas como meio de sensibilização, mas como beneficiário direto desses apoios.

Na área climática, por exemplo, os equipamentos culturais — os edifícios, os teatros — têm de se adaptar, melhorar a eficiência energética. E isso tem custos. Por outro lado, a arte tem também um papel de sensibilização: pode criar novos imaginários, formas diferentes de pensar o futuro e a nossa relação com o planeta. A ideia do “slow culture”, como já existe o “slow food”, ou mesmo o tema do "vagar", que Évora escolheu para a Capital Europeia da Cultura, vai muito nesse sentido — repensar o modo como organizamos a sociedade. Uma sociedade menos produtivista, menos extrativista. A cultura tem essa capacidade de estimular pensamento crítico, reflexão, e de propor novos modelos de vida.

Quanto à transição digital, há, claro, muitas oportunidades: novas formas de divulgar cultura, de chegar a públicos diferentes. Durante a pandemia isso foi evidente — conseguiu-se chegar a quem, de outro modo, nunca teria acesso a certos espetáculos. Mas também surgiram novos problemas: a precarização ainda maior do trabalho artístico, a desvalorização económica da criação, e questões que ainda não conseguimos medir bem, porque estamos no meio do turbilhão.

Além disso, há exclusões: gerações menos familiarizadas com o digital, desigualdade no acesso, e um problema crescente de ausência de pensamento crítico. Vivemos rodeados de conteúdos, algoritmos, e muitas pessoas são consumidores passivos desse mundo digital. Como é que respondemos a isso? Como é que nos posicionamos criticamente perante os algoritmos que moldam o que vemos?

A cultura — e, em particular, a educação para as artes — pode ajudar-nos a desenvolver essa capacidade crítica. Porque pensar é algo que se treina. E acho que hoje há uma certa apatia generalizada: as pessoas recebem os conteúdos de forma acrítica. É aí que a cultura pode e deve intervir.

"Acredito profundamente que a cultura pode ser um fator de divisão, mas também — e sobretudo — um elemento de conexão."

Como imagina uma política cultural à altura dos desafios do século XXI? Que elementos são, para si, imprescindíveis?

Desde logo, o ensino artístico tem de estar presente nas escolas, de forma clara e estruturada. A cultura deve ser entendida como uma infraestrutura social, tal como a saúde ou a educação.

Se tivesse de destacar algo, apostaria fortemente na rede de bibliotecas públicas. Esse é, aliás, um dos grandes projetos da Fundação Cultural Europeia. Em Portugal, a política da leitura pública, criada em 1987, é das poucas que tem tido continuidade, apesar dos altos e baixos. Mas agora precisa de um novo fôlego.

Hoje, as bibliotecas já não são apenas espaços de livros. São lugares de acesso à cultura em múltiplos formatos, espaços de proximidade, de encontro. E isso é fundamental: criar espaços de encontro físico, e também digital, porque precisamos de reequilibrar essa presença na esfera pública. Centrar a política nas pessoas, que são seres vivos, e que não podem viver apenas no mundo virtual.

É nesse encontro que se constrói o espaço público. Porque as redes sociais, por muito úteis que sejam, também são espaços de fragmentação. E nós precisamos de reconstruir espaços comuns. Espaços físicos, reais, onde o público se possa encontrar e reconhecer.

Mantém o seu otimismo quanto ao papel da cultura na construção de um projeto europeu, apesar de todas as adversidades?

Sim, continuo otimista no sentido em que continuo a acreditar que esse é o caminho. As adversidades existem, e são muitas, mas acredito profundamente no poder transformador da cultura.

Vivemos um tempo de mudança constante. E se, neste momento, não formos capazes de manter algumas convicções, alguns princípios orientadores, então, sim, estamos perdidos. Por isso, continuo a acreditar, e a trabalhar, a vários níveis, para que isso aconteça. E não desisto.