
No mundo da poesia, onde tantas vozes se perdem no ruído da pressa, Amadeu Baptista ergue-se como uma presença firme, lírica e luminosa. No passado dia 18 de junho de 2025, o seu nome ressoou com força renovada ao ser distinguido com o Grande Prémio de Poesia Gil Vicente, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores, com o apoio da Câmara Municipal de Guimarães.
Este galardão, que na sua primeira edição reconhece obras publicadas entre 2023 e 2024, consagra Danos Patrimoniais, uma monumental antologia pessoal que abarca quatro décadas de criação poética (1982–2022), publicada pela editora Afrontamento. O júri — composto por Isabel Cristina Rodrigues, José Carlos Seabra Pereira e José Manuel de Vasconcelos — atribuiu o prémio por unanimidade, elogiando a obra como um testemunho de “invulgar fidelidade à Poesia como presença ao mundo e apelo à vida de relação”.
A escolha de Amadeu Baptista, natural do Porto e nascido em 1953, é mais do que um simples reconhecimento: é uma homenagem a uma vida inteira dedicada à palavra, à linguagem como ferramenta de beleza, denúncia e revelação. A sua poesia, enraizada na “Geração de 80” — que soube renovar os códigos estéticos da literatura portuguesa —, constrói-se como uma ponte entre a tradição e a inquietação contemporânea.
Um poeta do mundo e da interioridade
A escrita de Baptista habita a tensão entre o silêncio e o grito, entre o culto da beleza e a denúncia da “desafinação geral” do mundo. Em obras como Antecedentes Criminais (2007) ou Caudal de Relâmpagos (2017), encontramos não só um profundo diálogo com a pintura e outras artes (os chamados interlúdios ecfrásticos), mas também a persistência de uma poesia que busca “a luz possível” em tempos de escuridão.
“O que vale o tempo das nossas vidas?” — pergunta o poeta, ecoando o que poderia ser a questão essencial da existência. Em Baptista, a resposta não é um conceito, mas um gesto: o poema como espaço de encontro, de memória, de resistência e de afecto.
Uma obra aberta à metamorfose
Segundo o júri, Danos Patrimoniais não é uma mera compilação: é um corpo vivo, uma “obra aberta às linhas de fuga – prenúncios de novos sentidos e novos recursos de sugestão, metamorfose e atracção.” Esta capacidade de renovação constante, de reencantamento, é rara e necessária, sobretudo num país onde a poesia tantas vezes é lida como um exercício periférico.
Um percurso internacional e de compromisso
Autor de mais de 40 livros de poesia, Baptista tem sido traduzido em diversas línguas e publicado em países tão diversos como Alemanha, México, Roménia ou Canadá. Tradutor também de poetas espanhóis, gregos e escandinavos, é um verdadeiro ponteiro cultural, alguém que semeia palavras para além das fronteiras, numa geografia emocional e estética profundamente europeia, mas com raízes lusas inconfundíveis.
Alguns dos seus livros infantojuvenis integram o Plano Nacional de Leitura, sinal de que a sua palavra se estende de forma transversal pelas gerações. E o mais recente título, Escrito na Grécia, já galardoado com o Prémio Maria Amália Vaz de Carvalho, promete continuar essa travessia entre o mundo interior e o património simbólico do Mediterrâneo.
Um prémio que honra o nome de Gil Vicente
É simbólico e profundamente justo que este novo prémio literário carregue o nome de Gil Vicente, mestre do verbo português e crítico mordaz da sua época. Como ele, Baptista não separa a beleza da lucidez, a arte da consciência, a estética da ética.
Este prémio — no valor de 12.500 euros — é mais do que um incentivo material. É um sinal de que a poesia continua a ser um lugar de resistência, de verdade e de memória. Um espaço onde, como em Baptista, ainda é possível dizer o indizível e resgatar o que o tempo e o esquecimento ameaçam apagar.
A entrega oficial do prémio será anunciada brevemente, e espera-se que este momento seja também uma celebração da palavra poética e da sua importância numa sociedade que muitas vezes esquece a delicadeza como forma de resistência.
No Alentejo, no Ribatejo, nas Beiras — terras de silêncio e de voz —, poetas como Amadeu Baptista recordam-nos que ainda há quem escreva para tocar o essencial: a alma humana.