
Em setembro de 2024, o Relatório Draghi veio “pôr o dedo na ferida” e alertar que a burocracia característica da União Europeia (UE) é um entrave à sua competitividade face à China e aos EUA. No seguimento deste diagnóstico, a Comissão Europeia (CE) lançou, em fevereiro deste ano, o Pacote Omnibus, um conjunto de medidas destinadas a reduzir barreiras regulatórias e tornar os procedimentos mais eficientes e menos onerosos.
As prioridades estratégicas deste pacote incluem tornar a comunicação de informações sobre a sustentabilidade mais acessível e eficiente e simplificar o dever de diligência para apoiar uma conduta empresarial responsável, entre outras.
Neste encadeamento, o PE deu agora o seu aval e votou também a favor do adiamento das datas de aplicação da nova legislação sobre dever de diligência e requisitos de comunicação de informações sobre sustentabilidade.
A prorrogação por um ano aplica-se a empresas da UE com mais de 5 000 trabalhadores e um volume de negócios líquido superior a 1,5 mil milhões de euros e empresas de países terceiros com um volume de negócios na UE superior a este limiar. Estas empresas só terão de aplicar as regras a partir de 2028. A data de aplicação será a mesma para a segunda vaga de empresas: as empresas da UE com mais de 3 000 trabalhadores e um volume de negócios líquido superior a 900 milhões de euros e para as empresas de países terceiros com um volume de negócios superior a esse limiar na UE. De salientar que, para entrar em vigor, estas alterações precisam ainda da aprovação formal do Conselho, de forma a cumprir os trâmites necessários.
Mas como é que tudo isto afeta os bancos? Sofia Santos, CEO da consultora Systemic, esclarece ao Jornal PT50 algumas das principais dúvidas.
De que forma é que a flexibilização das regras de reporte de sustentabilidade podem afetar os bancos e outras instituições financeiras? O que muda?
Antes de mais, é preciso sublinhar que o Pacote Omnibus é uma proposta para simplificar, e não terminar, com os requisitos de divulgação sobre práticas de sustentabilidade das organizações, que ainda não foi aprovada. Até que as propostas sejam aprovadas e transpostas, continua a vigorar a legislação atual (incluindo a CSRD – Diretiva de Reporte de Sustentabilidade Corporativa, a CSDDD – Diretiva de Due Diligence de Sustentabilidade Corporativa e a taxonomia da UE) baseada no direito local.
Com a informação à data de hoje, um banco ou outra entidade atualmente abrangida pela CSRD, mas que não é abrangida pela antiga Diretiva de Reporte de Informação não Financeira, poderá ter a obrigatoriedade de reportar as suas práticas de sustentabilidade não em 2026, mas em 2028. Ao nível dos conteúdos, muitos dos requisitos se mantêm, inclusive a obrigatoriedade de as entidades identificarem impactos, riscos e oportunidades através de uma dupla avaliação da materialidade. A única maior simplificação para os bancos seria que o cálculo do GAR – Green Asset Ratio fosse apenas realizado face às grandes empresas abrangidas pela CSRD (excluindo assim as PME). Caso se confirme que o GAR passaria a ter esta fórmula, então a grande novidade seria a diminuição da informação que os bancos teriam de recolher para o cálculo. No entanto, se o banco considerar o clima como fator de risco – e que é exigido pelo BCE – então necessitará de recolher essa informação na mesma.
A regulação associada aos fundos de investimento – SFDR (Regulamento de Divulgação de Finanças Sustentáveis) – não foi afetada pelo Omnibus, mas a discussão sobre este regulamento já estava em curso e poderá também sofrer alterações no futuro.
Há risco de conflitos entre essa flexibilização e outros regulamentos europeus ou internacionais que exigem divulgação de informações ESG por instituições financeiras?
Não parece haver conflito com outras regulamentações: o BCE está a exigir que os bancos incorporem os riscos climáticos nos cálculos de rácios de capital, e os reguladores do setor financeiro entendem que a divulgação de informação ESG (ambiental, social e governação) é crucial, pelo que o Omnibus até pode simplificar a obrigatoriedade de reporte, mas se o risco estiver lá, essa obrigatoriedade passa a necessidade.
As instituições financeiras devem continuar a exigir relatórios de sustentabilidade dos seus clientes corporativos, mesmo que não sejam mais obrigatórios?
As PME nunca foram obrigadas por diretiva a fazer relatório de sustentabilidade. As grandes empresas não cotadas só era esperado serem obrigadas por lei a fazê-lo em 2026. Se as instituições financeiras pedem ou não aos seus clientes um relatório ou informação sobre ESG, então isso faz parte da sua política de gestão de risco e de relacionamento com o cliente. E como vivemos numa economia de mercado, as instituições financeiras têm liberdade para o pedir ou não. As empresas clientes são livres de não prepararem o relatório se não forem obrigadas a isso, podendo sofrer consequências por não divulgar essa informação, se tal for importante para a sua análise de risco. Ou seja, em última análise o relatório (nos referenciais ESRS ou VSME, respetivamente obrigatório ou voluntário) vai ser uma decisão negocial e decorrente de boas práticas, não de obrigação legal.
De que forma a flexibilização pode afetar a qualidade e a comparabilidade das informações ESG divulgadas pelo setor financeiro?
A qualidade e comparabilidade só ficam afetadas se a flexibilização for assimétrica, ou seja, se algumas instituições reduzirem o nível de informação ESG mais do que outras. Uma vez que se trata de um setor altamente regulado e supervisionado, este risco é reduzido porque as autoridades quererão evitar assimetrias de informação prestada que possa afetar a credibilidade do sistema como um todo. Mas obviamente cada instituição pode recolher, tratar, criar mais dados, tal como o faz noutras áreas, e usá-los na sua gestão de negócio.
A redução no número de empresas obrigadas a reportar pode dificultar a avaliação de riscos ESG por bancos e investidores que investem nessas empresas?
Não necessariamente, por várias razões. Os bancos já fazem a sua própria análise de riscos ESG mesmo sem reportes obrigatórios e pedem diretamente informação às empresas; esta metodologia não vai regredir porque os riscos ESG continuam a ser relevantes para a banca e exigidos pelo BCE de forma gradual. Adicionalmente, os bancos já utilizam metodologias externas (ratings) com o mesmo objetivo de avaliar as empresas; este processo irá prosseguir e eventualmente aprofundar-se, pelo que de uma forma ou doutra as empresas continuarão a ser solicitadas a prestar informação ESG
Caso uma instituição financeira opte por continuar a reportar voluntariamente, há benefícios jurídicos ou riscos associados a essa decisão?
Sendo reporte voluntário e não havendo necessidade de cumprir normativos ou requisitos de ‘compliance’, não há benefícios jurídicos que identifiquemos. Contudo, o reporte voluntário deve ser claramente divulgado como tal, precisamente para evitar perceções de que a informação prestada está plenamente conforme com a CSRD.
De que maneira essa flexibilização pode afetar a confiança dos ‘stakeholders’ no compromisso do setor financeiro com a sustentabilidade?
Depende dos ‘stakeholders’ entenderem esta flexibilização como um sinal de abandono ou de desaceleração nos processos de transição – ou ao invés, a encararem como uma oportunidade para as empresas se focarem no que realmente importa, que são processos de descarbonização, financiamento à adaptação e mitigação climáticas, políticas de maior equilíbrio laboral, e as estratégias empresariais que ponham em prática esses temas.
Em última análise, o reporte de sustentabilidade deve der visto como um meio e não um fim em si mesmo. E os próprios ‘stakeholders’, caso sintam que a informação é necessária, e em que moldes é necessária, não deixarão de a solicitar às empresas.