A migração através do canal da Mancha é o foco de um novo acordo entre o Reino Unido e a França, anunciado quinta-feira, que os dois países pretendem começar a testar nas próximas semanas. “Um novo modelo piloto fará regressar as pequenas embarcações a França e, depois, um igual número de migrantes poderá vir para o Reino Unido a partir de França através de uma nova rota legal, totalmente documentada e sujeita a fortes verificações de segurança”, comunicou o Governo britânico.

O investigador Peter Walsh, do Observatório da Migração da Universidade de Oxford, considera que as barreiras jurídicas ao novo acordo “não serão substanciais”. No seu entender, o Reino Unido pode, para concretizar a medida agora anunciada, recorrer a uma lei de 2022 que permite considerar um pedido de asilo inadmissível e não o processar se o requerente tiver chegado de um país terceiro seguro.

Uma declaração conjunta aponta que o acordo precisa de passar pelo escrutínio legal da Comissão e dos Estados-membros da União Europeia, noticiou a Reuters. A agência cita uma fonte governamental , que indica que está a ser equacionado o retorno de 50 pessoas por semana, ou 2600 por ano.

Chegadas ao Reino Unido em pequenas embarcações


“É menos provável que haja desafios legais a isto do que ao [acordo com o] Ruanda, porque a questão central é se França é um país seguro para onde enviar requerentes de asilo. Para todos os efeitos, seria considerado um país seguro”, diz Walsh ao Expresso. Observa, porém, que é necessária aprovação legal da União Europeia e que esse campo gera “alguma incerteza”, porque “tem existido alguma oposição a isto por Estados-membros da linha da frente da UE, como o Chipre, Itália, Grécia, Espanha e Malta”.

O Presidente francês afirmou que a aplicação do pacto depende da possibilidade de França devolver migrantes rejeitados pelo Reino Unido a outros países europeus, noticiou a Bloomberg. “França não se pode tornar zona de despejo para pessoas a quem [o Reino Unido] não quer dar asilo”, afirmou Emmanuel Macron. Além disso, associou o elevado número de migrantes que tenta atravessar o canal da Mancha ao ‘Brexit’, dizendo que esse passo criou um “incentivo” dada a ausência de um acordo sobre migração entre o Reino Unido e os 27.

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O Governo britânico alega que o acordo vai prevenir travessias e “ajudar a acabar com o modelo de negócio de gangues organizados que beneficiam da miséria das pessoas”. O primeiro-ministro, Keir Starmer, disse: “Pela primeira vez, migrantes ilegais serão enviados de volta para França, atingindo o centro do modelo de negócio destes gangues e enviando uma mensagem clara de que estas viagens que ameaçam vidas são inúteis”.

As questões migratórias têm sido centrais na política britânica e Walsh observa que durante muito tempo o foco esteve no controlo das fronteiras. “A chegada destas pequenas embarcações não é autorizada. É um sinal muito visível de falta de controlo na fronteira, o que acho que explica, em parte, o grande foco nisto”, comenta o investigador.

Dados do Observatório da Migração apontam que foi detetada a passagem de cerca de 37 mil pessoas pelo canal da Mancha em pequenas embarcações só em 2024. Estima-se que 70% das pessoas que fizeram travessias entre 2018 e 2024 fossem cidadãos de seis países: Irão, Afeganistão, Iraque, Albânia, Síria e Eritreia.

O novo acordo prevê que os pedidos de asilo de migrantes que tenham atravessado a Mancha possam ser considerados inadmissíveis. Migrantes apanhados nessa travessia podem ser detidos e retirados do Reino Unido. Por cada migrante que Londres devolver a Paris, França poderá enviar alguém para o Reino Unido através da nova rota legal.

Segundo o comunicado, o Ministério do Interior britânico toma uma decisão depois de as pessoas em França apresentarem uma candidatura a expressar interesse em entrar no Reino Unido e passarem nas verificações biométricas. “Alguém que tenha chegado numa pequena embarcação e retornado a França não será elegível”, lê-se no documento.

Recorde-se que enquanto o Partido Conservador esteve no poder (2010-24), manteve um projeto controverso para deportar requerentes de asilo para o Ruanda. O acordo foi considerado ilegal pelo Supremo Tribunal do Reino Unido, mas o Executivo fez aprovar nova legislação nesse sentido em 2024. Quando o Partido Trabalhista assumiu o poder, há um ano, cancelou esse plano mas avançou com outras medidas no sentido de apertar o controlo fronteiriço e acelerar deportações.

O êxito do acordo anunciado está por determinar. “É uma medida dissuasora e acho que se pode aplicar uma lógica semelhante à que se aplicava ao Ruanda. Vai depender de um elevado número de pessoas ser devolvida a França. As pessoas em Calais que querem vir para o Reino Unido viajaram milhares de milhas para estar cá, gastaram milhares e milhares de euros, estão dispostas a arriscar as suas vidas ao entrarem numa pequena embarcação. Se houver uma pequena probabilidade de serem devolvidas a França, podem ver nisto apenas mais um risco que acreditam que valha a pena assumir”, analisa Walsh. O investigador aponta que um retorno de 50 pessoas por semana — que, em termos anuais, representaria 6% do número de chegadas — se enquadraria antes num “cenário de baixo retorno”, sem impacto dissuasor.

Segundo a BBC, as autoridades francesas impediram 24.791 pessoas de atravessarem o canal da Mancha em pequenas embarcações entre julho de 2024 e maio de 2025. Não sabem o que lhes aconteceu ou se voltaram a tentar fazer a travessia.