As reportagens que, de forma mais ou menos recorrente, vão surgindo sobre a proliferação de "lojas de telemóveis", "frutarias" ou "de recordações turísticas" têm levado a Câmara de Lisboa, na pessoa do seu presidente Carlos Moedas, a defender o fim do "licenciamento zero" por forma a combater a "monofuncionalidade" do comércio local. Segundo o autarca, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu instar o governo a alterar a lei do licenciamento zero para que os municípios detenham um controlo prévio sobre as atividades económicas, evitando, por exemplo, a proliferação das lojas de souvenirs.

Desde logo, Carlos Moedas só começou a falar do fim do "licenciamento zero" em 26 de fevereiro, 1.226 dias depois de ter assumido funções, falando de um problema que, já em julho de 2019, merecia um artigo de opinião intitulado "Não deixem que a Baixa seja uma feira de souvenirs" (ionline), onde se criticava a proliferação deste tipo de estabelecimentos comerciais na Baixa lisboeta, descaracterizando a zona e a predominância de produtos turísticos de baixa qualidade fabricados no Oriente. O problema da proliferação destas lojas, com excesso de funcionários para o seu volume de negócios e que suportam arrendamentos absolutamente absurdos, não começou com Carlos Moedas mas agravou-se desde que este se tornou no edil de Lisboa.

Acredito que este foco discursivo na atribuição de culpas ao "licenciamento zero" é apenas uma forma de nos atirar areia para os olhos e de nos distrair daquilo que é realmente importante: que é a regulação da imigração e a fiscalização por parte da ASAE, PSP e Polícia Municipal sobre negócios de fachada. Se acabarmos com o "Licenciamento Zero" temos de regressar ao ponto em que foi necessário criar esta simplificação e às suas motivações: esta simplificação administrativa foi uma resposta à lentidão dos serviços da Câmara Municipal de Lisboa que chegava a demorar anos a aprovar processos... A CML, de hoje, em 2025, é capaz de fazer o que não fazia antes de 2014? Tendo em conta a degradação acentuada de praticamente todos os serviços autárquicos desde 2021, tenho sérias e fundadas dúvidas.

Com efeito, não acredito que o fim do "licenciamento zero" seja capaz de, automaticamente, resolver o dito problema da "monofuncionalidade" do comércio em algumas zonas da capital, sobretudo no centro histórico. Enquanto existirem mecanismos que permitam o uso de estabelecimentos comerciais como geradores de empregos fictícios com a finalidade de regularização de imigração e de excesso de turismo (diretamente associado ao Alojamento Local) em certas zonas de Lisboa, não estaremos a atacar o problema na sua origem.

Na minha opinião, é preciso alterar o quadro legal para permitir à câmara municipal intervir com mais eficácia, criando zonas de proteção para determinados tipos de comércio, expandindo e simplificando os apoios do programa "Lojas com História" (lançado em 2015) e promovendo a diversidade do comércio lisboeta. Sobretudo, para combater o excesso de turismo, é preciso parar de autorizar a construção de novos hotéis quando esta decorre em locais onde já existiu habitação e, sobretudo, parar completamente a instalação de novas unidades de Alojamento Local (AL) em casas de habitação e converter os mais de 28 mil AL legais (e talvez outro tanto ilegais) em habitações. A redução da oferta de alojamento turístico irá aumentar os preços e, consequentemente, reduzir a pressão turística na cidade e diversificar o comércio local que, através desta pressão, se orienta cada vez mais para estas atividades de serviço turístico.

Mas quanto ao que diz explicitamente o Edil de Lisboa: a Câmara Municipal quer mesmo chegar ao ponto de limitar, diretamente, que tipo de comércio local existe em cada rua, avenida, bairro, freguesia e cidade? Quantos cafés há em cada um destes segmentos? Quantos barbeiros? Quantas lojas de eletrónica ou restaurantes? Quantas lojas de açaí, quantas croissanterias, quantas mercearias, ad infinitum?... Com base em que critérios? Com que frequência de atualização e com que impacto na economia local, com que rapidez e eficiência desta hiper-micro-gestão? É isto que Carlos Moedas ambiciona ser? Um micro-gestor de uma cidade em que a autarquia exerce um poder comparável apenas ao dos "armazéns do povo" dos países comunistas da década de 1980?

Por outro lado, Carlos Moedas parece esquecer o mais básico: se a maioria destas lojas "de telemóveis" e "souvenirs" são, mesmo (e são) empresas fictícias que existem apenas para justificar contratos de trabalho e a aprovação de autorizações de residência e posterior acesso a outros países da União Europeia, como garantir que estas empresas fictícias não irão abrir outros negócios fictícios com máscaras diferentes mas enquadráveis dentro dos limites da CML por rua (?), bairro (?) ou freguesia (?): ou seja, como é que não serão "livrarias", "lojas de reparações", "pronto-a-vestir", ou "restaurantes", todos fictícios, sem real atividade ou sustentação financeira que não seja a lavagem de capital ou a justificação de dezenas de postos de trabalho por estabelecimento? Ou Carlos Moedas é ingénuo ao ponto de acreditar que estas redes não terão esta flexibilidade e capacidade de adaptação?

Quanto ao branqueamento de capitais, confirmado há dias num debate na NOW sobre este tema pelo líder da comunidade do Bangladesh em Portugal, há que dizer que, em Portugal, a verificação de se um estabelecimento comercial tem atividade real ou se é usado para branqueamento de capitais envolve várias entidades. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) tem um papel central ao fiscalizar a atividade económica declarada, analisando dados como os de faturação, as declarações de IVA e IRC, e realizando auditorias para detetar eventuais incongruências. A Polícia Judiciária, através da Unidade de Informação Financeira (UIF), investiga especificamente casos de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, tratando sinais de alerta ou transações suspeitas. Existe, portanto, um quadro legal e investigativo para o qual a Câmara Municipal de Lisboa e a sua Polícia Municipal têm o dever de remeter sempre que existam indícios de atividade fraudulenta ou inexistente, agindo em articulação com a PJ e a AT. Além destas, existem ainda autoridades setoriais, como a ASAE, que podem detetar anomalias em determinados setores de atividade, como a restauração ou o comércio.

O edil de Lisboa não disse, em momento algum, se a sua Polícia Municipal o fazia nem quantos casos suspeitos tinha remetido para investigação posterior. E se, como disse à NOW, estes processos demoram "dois a três anos", recordo que está a fazer quatro anos à frente do leme da autarquia, sendo que se o tivesse feito no primeiro ano provavelmente hoje já não estaríamos a falar destes casos.

Rui Martins é fundador do Movimento Pela Democracia Participativa