Num contexto geopolítico tenso e com pressões inflacionistas a ditarem novas políticas monetárias, a inteligência artificial (IA) surge como a ferramenta com potencial para trazer eficiência e resiliência, mas também como uma força que pode amplificar riscos sistémicos caso não seja compreendida e regulada de forma eficaz. Do ponto de vista macroeconómico, os mercados já testemunham a transição da IA de uma ferramenta analítica para um agente quase autónomo em processos de decisão financeira. Desde a gestão de portfólios baseada à criação de produtos estruturados algorítmicos, ou mesmo a intervenções automatizadas em tempo real por parte de fundos quantitativos.

Este cenário obriga a uma nova discussão sobre “accountability”, supervisão, e transparência dos modelos. Várias instituições de referência, como o BIS e a ESMA, começam a alertar para os perigos de uma “caixa negra” algorítmica onde nem os criadores conseguem explicar as decisões tomadas. É neste contexto que a regulação europeia sobre IA (EU AI Act) ganha importância estratégica, sobretudo na forma como classifica modelos de risco elevado no setor financeiro.

Mas nem tudo é risco. A IA representa também uma janela de oportunidade para modernizar um setor financeiro europeu ainda marcado por processos manuais, silos de dados e uma proposta de valor pouco adaptada à geração digital. Bancos e gestoras de ativos começam a incorporar IA para hiperpersonalizar produtos, automatizar aconselhamento financeiro, e prever comportamentos de mercado com base em sinais fracos e dados alternativos. Neste sentido, a IA não é apenas eficiência, é diferenciação competitiva.

Em Portugal, os primeiros sinais desta tendência já se fazem sentir, ainda que a velocidades desiguais. A maioria das instituições financeiras está em fase exploratória ou de “proof of concept”, com foco na eficiência operacional, como é o caso da aplicação de IA generativa na interação com o cliente, prevenção de fraude financeira, scoring de crédito e atendimento automatizado. No entanto, a ambição de usar IA como instrumento de estratégia de produto ou de relação com o cliente ainda é limitada por desafios como a escassez de talento especializado, a dependência de legacy systems, a fragmentação regulatória e a incerteza sobre o retorno do investimento (ROI) em IA. Dados recentes, obtidos através da Fintech Solutions Intelligence Platform e com base num inquérito realizado no âmbito do evento FinAI Conf, confirmam que a falta de expertise interno (53%), os legacy systems (44%) e as exigências regulatórias (41%) são os principais entraves à adoção de IA no setor.

Mais crítico ainda é o fator estrutural da literacia financeira e digital da população portuguesa. Portugal continua a figurar entre os países com piores níveis de literacia financeira da União Europeia, segundo dados da Comissão Europeia e da OCDE. Esta realidade limita profundamente a capacidade de adoção e utilização confiante de serviços financeiros baseados em IA. Dados do mesmo estudo indicam que preocupações com explicabilidade, ROI incerto e infraestrutura fragmentada também estão entre os principais bloqueios à mobilização plena da IA, sobretudo quando os próprios utilizadores e colaboradores internos não conseguem compreender, medir ou confiar nas decisões automatizadas. A consequência é uma baixa adesão a produtos inovadores, mesmo quando estes oferecem vantagens objetivas.

Apesar destes desafios, a expectativa sobre o impacto futuro da IA no setor financeiro é claro. Dados do mesmo inquérito da Fintech Solutions Intelligence Platform revelam que a maioria dos líderes de negócio do tecido financeiro português identifica a interação com o cliente, a prevenção de crime financeiro, o RegTech, a verificação biométrica e a hiperpersonalização como as áreas de maior impacto nos serviços financeiros. Estes resultados reforçam a perceção de que a IA será determinante não apenas na eficiência operacional, mas na construção de novas vantagens competitivas, nomeadamente na forma como os produtos são concebidos, entregues e experienciados pelos utilizadores.

Paradoxalmente, é precisamente nos desafios que Portugal e a Europa enfrentam que poderá residir uma oportunidade. A tecnologia, especialmente a IA, pode ser o catalisador que permitirá a países com fraca literacia financeira não só colmatar lacunas históricas, mas até ultrapassar geografias mais avançadas. Sistemas inteligentes, aliados a uma abordagem centrada no utilizador, podem traduzir complexidade financeira em linguagem acessível, criar assistentes personalizados para educação e gestão financeira, e promover uma maior inclusão em escala. Assim, Portugal poderá transformar a sua fraqueza estrutural num terreno fértil para soluções inovadoras de IA aplicadas à literacia, simplificação de escolhas financeiras e empowerment do consumidor.

O mesmo se aplica à própria Europa. Se durante décadas a sua tradição regulatória foi encarada como um entrave à inovação (quando comparada com modelos mais permissivos como os dos EUA ou da Ásia), a era da IA pode inverter essa lógica. Com modelos de IA capazes de interpretar, traduzir e executar processos regulatórios complexos, a burocracia deixa de ser um fardo e passa a ser um campo fértil para automação responsável e RegTech avançado. Neste novo cenário, o peso regulamentar europeu pode transformar-se numa vantagem competitiva, garantindo confiança, segurança e liderança ética num mercado global cada vez mais exigente.

Assim, o caminho para uma integração eficaz da IA nos mercados financeiros portugueses exige uma estratégia coordenada entre entidades públicas, setor financeiro e universidades. É imperativo que qualquer plano nacional de digitalização financeira inclua um eixo robusto de educação e capacitação da população, com especial foco em públicos mais vulneráveis. Portugal pode aqui assumir uma posição líder, se conseguir alinhar os seus hubs de inovação financeira (como o FinAI Lab ou a Fintech House) com agendas de capacitação em IA, regulação inteligente e atração de talento internacional.

O que está em causa não é apenas a adoção de tecnologia, mas a capacidade de Portugal influenciar o futuro da prática financeira na Europa. Se for capaz de combinar experiência regulatória, agilidade de mercado e uma visão centrada no utilizador, o país pode passar de consumidor tardio a protagonista europeu da transformação digital financeira impulsionada por IA.