No coração de Samora Correia, onde o silêncio é apenas interrompido pelo som ritmado das machadas, decorre uma das mais antigas e especializadas campanhas agrícolas do país: a tiragem da cortiça.

Na Companhia das Lezírias, a maior exploração agropecuária nacional, o verão é tempo de colheita — não de frutos, mas de cascas. Cascas que, arrancadas com precisão milimétrica, revelam o interior cor de laranja dos sobreiros e dão origem a um dos maiores tesouros naturais de Portugal: a cortiça.

Os tiradores, munidos de machadas afiadas e olhos treinados, percorrem o montado em silêncio, atentos à textura da casca e ao som que ela devolve ao toque. Cada golpe é calculado com mestria, abrindo fendas verticais e horizontais na cortiça, sem jamais ferir a madeira viva do sobreiro.

“Se bater na madeira da árvore e provocar uma ferida, essa ferida pode dar origem à entrada de fungos e até à morte da árvore”, alerta Eduardo Oliveira e Sousa, presidente do Conselho de Administração da Companhia das Lezírias, que acompanhou a Lusa nesta visita.

Depois da extração, a cortiça é deixada no chão, onde os molheiros entram em ação. Com movimentos rápidos e coordenados, recolhem a cortiça e formam molhos que serão carregados para os estaleiros por tratoristas.

É um trabalho exigente e delicado, onde o risco está sempre presente. As machadas, afiadas diariamente, cortam com precisão milimétrica, mas um deslize pode ser fatal. Todos os trabalhadores estão protegidos por seguros específicos para acidentes. “Este ano, felizmente, não houve nenhum [acidente]”, conta o antigo presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP).

Entre os rostos que dão vida à campanha está Hélder Fortio, tirador há 34 anos. Aprendeu com o pai, e lidera uma equipa de 30 trabalhadores, todos portugueses e habituados ao ritmo exigente do campo.

“Somos uma empresa florestal, trabalhamos o ano inteiro. Fazemos tudo: limpeza, corte, abatimento de árvores. Mas a cortiça é o coração do nosso trabalho”, contou à Lusa.

Apesar da exigência física, Hélder revela que o ordenado é bom — muitas vezes o equivalente a dois ou três salários mínimos —, mas não é para todos.

“Nem toda a gente suporta isto”, afirma, referindo-se ao calor, ao peso da cortiça e à precisão exigida.

Neste último dia de campanha, Hélder Fortio trouxe o filho para aprender, e o irmão fez o mesmo. Mas sabe que são exceções.

“Quando acabar esta geração, não sei como vai ser”, admite, apontando o envelhecimento da mão-de-obra e a falta de interesse dos mais novos como os principais problemas do setor.

Segundo Eduardo Oliveira e Sousa é cada vez mais difícil encontrar jovens disponíveis para este trabalho, apesar da boa remuneração, que pode chegar aos 100 ou 115 euros por dia. Ainda assim, refere, algumas “campanhas conseguem atrair estudantes de agronomia que, durante o verão, trocam a praia pelo campo”.

A Companhia das Lezírias ocupa um território vasto e diverso, compreendido entre os rios Tejo e Sorraia, dividido pela Reta do Cabo (E.N.10) em Lezíria Norte e Lezíria Sul. Na Lezíria Norte, cerca de 1.300 hectares são explorados por rendeiros, enquanto na Lezíria Sul, dos quase 5.000 hectares, 2.200 são geridos diretamente pela Companhia, com destaque para pastagens e arrozais.

Além da cortiça, a Companhia cultiva arroz em várias zonas, como os Pauis de Magos, Belmonte e Lavouras, totalizando cerca de 1.500 hectares. Na Charneca do Infantado e nos Pauis, a exploração direta inclui ainda milho, vinha e olival, numa área que ultrapassa os 11.000 hectares.

A cortiça é um bem valioso, mas essa valorização também a torna vulnerável. O roubo é um problema grave deste setor, que afeta não só a produção, mas também o ânimo de quem trabalha a terra.

“Não quero usar a palavra tragédia, mas o roubo é um drama, um drama que desmotiva, desvaloriza e prejudica”, refere Eduardo Oliveira e Sousa.

O impacto vai além da perda material: uma extração feita sem cuidado, por mãos não especializadas, pode comprometer a vida da árvore.

No caso da Companhia das Lezírias, a dimensão da propriedade exige vigilância constante.

“Temos uma empresa de segurança que faz rondas durante a noite”, explica, referindo que é um investimento pesado, retirado diretamente dos resultados da campanha, mas que considera indispensável.

“Muito poucos podem pagar uma empresa de segurança para ter um guarda permanente 24 horas por dia”, diz, acrescentando que este tipo de crime “precisa de resposta firme” por parte do estado.

Conhecedor do ciclo da floresta como poucos, a ligação de Eduardo Oliveira e Sousa à cortiça vem de longe. Nasceu rodeado por produtores vegetais, cresceu a observar os trabalhos no campo e seguiu o curso de agronomia.

Para ele, a tradição é a principal garantia da sobrevivência do mundo rural.

“Há 50 anos, um filho de um trabalhador rural seguia o mesmo caminho. Hoje, pode ser médico, engenheiro ou até primeiro-ministro”, observa. Essa liberdade, nota, é positiva, mas a diminuição da mão-de-obra preocupa-o profundamente.

“Há coisas que não se fazem de outra maneira que não seja com a presença humana”, sublinha, rejeitando a ideia de que máquinas ou inteligência artificial possam substituir o saber manual.

Para ele, a solução está “na valorização do produto” — seja palpável, como a cortiça, a pinha ou a madeira, seja intangível, como a fixação de carbono ou a preservação da biodiversidade. Se esses valores forem reconhecidos e remunerados, “haverá sempre quem queira trabalhar no campo, cuidar da floresta e manter viva a arte da cortiça”.