
"No verão, perguntaram-me se eu estava interessado em fazer um restaurante neste espaço e a minha resposta foi imediata: claro que sim e é o Bougain. A verdade é que eu já tinha pensado que aquele era o espaço perfeito para o Bougain em Lisboa." O espaço é o incrível jardim do Hotel Valverde, um tesouro insuspeito para muitos dos que percorrem diariamente a Avenida da Liberdade, e o homem é Miguel Garcia, que há três anos trocou uma carreira brilhante na gestão dos melhores hotéis do mundo pela vontade de criar algo com a sua assinatura e tem vindo ora a rejuvenescer grandes clássicos ora a criar casas que se tornam instantaneamente de frequência obrigatória para quem vive na cidade e para os turistas que lhe querem conhecer o verdadeiro ADN. Por isso, quando o administrador do hotel, Pedro Mendes Leal, o convidou, nem sequer hesitou.
Com o hotel sempre a funcionar, Miguel deitou mãos à obra, fez nascer um bar em duas semanas, adaptou o espaço do restaurante — para funcionar do pequeno-almoço ao jantar, das 7.00 às 24.00 —, decorou-o com o fio condutor do irmão mais velho mas respeitando o ambiente próprio e em pouco mais de seis meses abriu a porta do Bougain Avenida, no n.º 164 da Av. Liberdade.
"Foi um casamento que aqui fizemos, porque deixar alguém de fora explorar um restaurante num hotel tem de ser uma relação de longo prazo. Um casamento é para manter. Mas eu já tinha esta experiência do lado de lá, conheço as dores dos dois lados e sei como se atenuam", relata, em entrevista ao SAPO, Miguel Garcia, que à frente do Tivoli São Paulo e depois Lisboa já acolhera o Seen e reconhece, agora do lado de cá, que quem entra nesta relação tem de respeitar o foco hoteleiro: o hóspede. "Não podem faltar mesas, serviço e prioridade a quem está num hotel como este. Ainda que haja também essa atenção para com quem vem apenas almoçar ou jantar, quem fica no Valverde tem de ter no Bougain Avenida uma razão extra para aqui se hospedar." E concretiza: "É agregar valor ao destino-hotel, ao mesmo tempo que se tira partido deste enorme potencial."
E se alguém lhe oferecer um tártaro de beterraba fumada?

De portas abertas desde meados de maio, o Bougain Avenida tem estado todos os dias quase lotado e muito disso deve-se à grande atenção que Miguel dá ao boca-a-boca. "Não é um selo na entrada que faz um restaurante, é as pessoas irem e repetirem e recomendarem aos amigos", frisa. "Isto é a maior credibilidade que se pode garantir, a recomendação a familiares e amigos é o melhor indicador" para quem quer ter um restaurante que se torna incontornável e se afirma nas escolhas, mantendo-se relevante ao longo do tempo.
Escusado será dizer que essa fama merecida só se consegue servindo a melhor comida pela mão de uma equipa distintiva e assegurando uns pozinhos de novidade. E depois de abrir as portas da Casa da Pérgola, em Cascais, ao novo conceito com um reconhecimento de qualidade genuína, Miguel não esqueceu nenhum dos fatores ao apresentar aos lisboetas o presente de poderem aqui desfrutar dos prazeres do Bougain — os que já conheciam das propostas originais da chef Diana Roque e os que vêm agora pela mão do chef João Santos, numa cozinha que assume a sua "vocação mediterrânica" e valoriza, acima de tudo, o produto e a estação do ano.
Os pratos são descritos por Miguel com o detalhe de quem não está ao fogão mas esteve intimamente ligado ao processo de criação e escolha do que se repetiria e do que haveria de novo num menu cuja simples leitura nos dá água na boca. Sobretudo se somos já conhecedores da relação de longo prazo que as casas do Grupo São Bento têm com os fornecedores, da superior carne belga ao peixe diretamente chegado da lota de Cascais. "Mais do que os ganhos de sinergia, essa relação com os consumidores é uma garantia de qualidade."
Ainda assim, há que reconhecer o traço de génio que marca algumas propostas do Bougain Avenida. E aí é preciso dar créditos ao chef, em particular numa entrada que merece o seu próprio parágrafo, sobretudo por ser, à primeira vista, um herói improvável: o tártaro de beterraba fumada com abacate e aipo crocante, que nem pede licença para dar um verdadeiro baile ao paladar dos mais experimentados comensais. Só por ele, vale a pena a experiência.
Mas há, claro, outras originalidades nesta casa que merecem bem ser não só experimentadas como repetidas. No irmão mais novo do cascalense Bougain, em que se reconhecem os tecidos tropicais, o mármore verde Guatemala e a vegetação que faz sentir que estamos num jardim mesmo quando dentro de casa, brilham entradas como a bouillabaisse de garoupa e camarão, o tartar de atum picante e o carpaccio de vieiras, seguidas de perto pelos artistas principais, que incluem delícias como os salmonetes com puré de alho-francês, o robalo-do-mar au papillote (uma obra-prima que estimula os cinco sentidos), o rib eye maturado e o steak au poivre temperado a preceito. Mas não faltam ali os clássicos de assinatura da marca, incluindo o lírio curado e o beef Wellington, tudo pronto a casar com uma garrafeira de luxo, que conta mais de 130 rótulos portugueses de todas as regiões, destacando-se nela até pequenos produtores, e que oferece também propostas selecionadas de origem francesa ou italiana.
Quem pratica sem remorsos o pecado da gula ficará especialmente feliz com as sobremesas do Bougain Avenida, mas há uma que se destaca até para quem não é de doces: os imperdíveis profiteroles. E se já está a torcer o nariz (como eu fiz quando mos recomendaram), acredite que nunca provou nada assim. Apenas para despertar-lhe a curiosidade: são de uma leveza indescritível e em vez de creme trazem gelado de baunilha, com a crocância do pistachio a fazer explodir o sabor do chocolate quente. Sem mais comentários.
Porque estamos num hotel, na verdade pode aproveitar-se a casa também na versão bar — há belíssimos cocktails de assinatura se não quiser ficar-se pelos clássicos, incluindo um Ginger Basil Smash, um Passion Affair e um Pink Sour — ou, entre os almoços e os jantares, perder-se na carta de bar e jardim, onde não faltam as ostras e os camarões (al ajilo ou em cocktail), nem os tártaros fresquíssimos, além de um chá das cinco servido a preceito.
Um negócio de pessoas felizes
Para português que se preze, a comida é fundamental. E nos restaurantes de Miguel Garcia leva-se esse princípio muito a sério. Mas um mau serviço pode arruinar uma belíssima refeição, daquelas que não pretendem ser experiências fora do normal mas antes ser recordadas, repetidas, vir-nos à cabeça recorrentemente sempre que nos assalta a dúvida de "onde vamos comer hoje". "As pessoas são o que há de mais importante nisto. Elas SÃO o negócio." E pensar assim, para quem tem a cargo uma equipa de 180 pessoas (só ali, no Bougain Avenida, são 55), significa ter bem presente que se tem responsabilidade por 180 famílias, sobre o seu rendimento mas também a sua felicidade.
"Fala-se imenso de chefs, mas se não conseguimos atrair e fixar talento na sala, em quem está a fazer o serviço e a dar a cara pelo que corre bem ou menos bem, não é possível fazer quase nada. As pessoas são o verdadeiro coração de um restaurante, são elas que fazem uma casa — e eu acarinho muito esse conceito antigo, 'a casa'", confessa Miguel, aventando que já era temo de se fazer um "service on fire" para trazer à ribalta esses que são os atores principais. "Isto é um negócio de pessoas: colaboradores e clientes", repete, apontando a importância de "humanizar um restaurante" quando se quer, mais do que ser moda, ter "uma casa que é para ficar". "Um bom restaurante é aquele em que criamos laços, em que se cria um relacionamento de tal forma que, como acontece connosco, nas reservas chegam a perguntar se determinado colaborador está a trabalhar naquela noite. Isto só acontece se os colaboradores estiverem realizados e felizes, quando não se limitam a decorar o número da mesa e a recolher pedidos mas antes mergulham na experiência com o cliente."
Miguel Garcia reconhece que há uma parte disso que pode ser ensinada ou melhorada — saber que é importante sorrir, olhar o cliente nos olhos, não ser mecânico ou estar tenso; verdadeiramente, ser hospitaleiro —, mas requer uma predisposição própria, que ali é privilegiada, bem como um tratamento de respeito e acolhimento quase familiar na equipa, e recompensa à medida. "É preciso que as pessoas gostem do que fazem e sejam felizes ao fazê-lo", resume. É a visão de longo prazo, que passa, assume, por três esferas de igual importância: um bom espaço, consistência na qualidade da comida e um serviço que nos faz querer voltar. "Temos de ser bons e surpreender na mesma medida nas três dimensões."
É esse cuidado que tem garantido casas cheias, dos clássicos Café de São Bento (que também já está em Cascais) ou Snob aos novíssimos Corleone e Bougain. E cheias de portugueses, que já são "da casa". "Os portugueses são o nosso maior grupo de clientes. Mas também tenho estrangeiros residentes — muitos americanos, ingleses e franceses que nos frequentam semanalmente." É a prova de uma missão bem sucedida, diz. E explica: "Estes são os clientes que e deixam feliz, os que aqui vivem, porque os turistas que eu quero atrair são os que vão recomendados pelos residentes, os experienced travelers que se recomendam com os locais, que são clientes habituais."

Um grupo que já é família
É esta visão peculiar que tem tornado o Grupo São Bento tão incontornável: a capacidade de, em cada casa, os clientes se sentirem acolhidos como em família. Seja italiano, português, clássico ou contemporâneo, não se vai comer a um sem lá se voltar, sem se criar um hábito que só percebemos que o é porque já cumprimentamos funcionários e outros clientes como amigos. E se o ritmo de crescimento do grupo, já com seis casas permanentemente cheias em meros três anos de vida, quase faz acreditar que é fácil construir algo assim, Miguel Garcia não tem dúvidas de que não é coisa de sorte nem que se faça da noite para o dia. "É preciso tempo para fazer viver uma filosofia, as coisas têm de ir acontecendo e nós temos de ir moldando e afinando as coisas até estarem devidamente oleadas e consolidadas. Não é à toa que por vezes os restaurantes individuais têm um carisma especial."
Por isso mesmo, já foi avisando que nos próximos tempos não contem com ele para novas estreias — ainda que não tenha resistido a mais um ou dois projeto sobre os quais ainda nada revela, mas que deverão abrir portas até ao final deste ano. De resto, já recusou vários convites: "Já disse que em 2026 não contem comigo, estarei concentrado em consolidar, em trabalhar nas melhorias que serão necessárias e que requerem tempo." E no ano seguinte? "Há algumas coisas em cima da mesa, mas nada fechado", confessa, ainda que frise que não é seu objetivo fazer "uma coleção de restaurantes".
Para já, Miguel Garcia tem que sobeje no prato, que foi enchendo desde que comprou o Café de São Bento, em 2022, e mudou tudo para melhor, sem mudar nada que desvirtuasse uma das casas mais icónicas de Lisboa — os clássicos bifes são feitos com a melhor carne de sempre, as propostas de vinhos casam na perfeição, há novas tentações à sobremesa (com destaque, a par dos gelados Nannarella, para o melhor bolo de chocolate do mundo e a tarte tatin de maçã) e alternativas a bife que em nada desonram as origens: o tártaro, os carpaccios de novilho e salmão fumado, uma tarte vegetariana e o bacalhau gratinado. Sem inventar e sem desiludir, adicionou uns 80 anos aos 40 bem vividos de um dos mais notáveis restaurantes de Lisboa.
Mas esse foi apenas o primeiro passo nesta grande aventura a que Miguel Garcia foi chamado e que o levou a criar o Bougain em Cascais, em 2023, e um ano depois o Corleone, na Casa da Villa — um italiano onde os grandes clássicos que se servem à mesa da famiglia enquadrados pela Baía de Cascais. A fechar o ano passado, reabriria as portas do mítico Snob, onde continuam a conviver jornalistas, intelectuais, políticos e artistas, e já neste 2025 foi tempo de extensões: Cascais ganhou os melhores bifes de Lisboa e a Av. Liberdade as delícias que até agora eram exclusivo da Casa da Pérgola.