Passada a turbulência inicial, o Regime dos Residentes Não Habituais (RNH 2.0) começou a ganhar ritmo. Muitos se apressam a convidar estrangeiros qualificados a mudar-se para Portugal, cumprindo assim o objetivo do artigo 58.º- A do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) — o incentivo fiscal à investigação científica e inovação, ou IFICI. Mas, por trás do aparente sucesso, esconde-se um iceberg de preguiça legislativa que pode fazer naufragar o regime.

O RNH 2.0 nasceu para substituir o regime anterior, extinguindo os benefícios para pensionistas e focando-se nos trabalhadores qualificados e empresários. Oferece uma taxa fixa de 20% sobre os rendimentos do trabalho auferidos em Portugal durante 10 anos. Para ser realmente atraente, promete ainda isentar de IRS todos os rendimentos obtidos no estrangeiro — mas, curiosamente, essa isenção não está prevista no artigo 58.º- A do EBF, que cria o regime. Em vez disso, encontra-se no artigo 81.º do Código do IRS (CIRS), no seu n.º 4, que estipula:

“Aos sujeitos passivos que beneficiem do regime previsto no artigo 58.º- A do Estatuto dos Benefícios Fiscais, e obtenham, no estrangeiro, rendimentos das categorias A, B, E, F e G, aplica-se o método da isenção, sendo obrigatoriamente englobados para efeitos de determinação da taxa a aplicar aos restantes rendimentos”.

À primeira vista, parece claro: isenção garantida. Mas é aqui que começa a confusão. A expressão “método da isenção” é um termo técnico do direito fiscal internacional, aplicável apenas quando existe efectivamente dupla tributação, isto é, quando o rendimento foi tributado no país estrangeiro e, portanto, precisa ser isento em Portugal para evitar a dupla tributação.

Porém, e curiosamente, o problema reside no facto de a redacção actual não vincular a aplicação do método da isenção à existência da tributação, efectiva ou potencial, no estrangeiro, como acontecia no RNH 1.0, em que a isenção estava condicionada à efectiva tributação ou à possibilidade de tributação nos termos das convenções internacionais.

Esta desconexão entre a norma e a realidade pode conduzir a interpretações restritivas por parte da Autoridade Tributária, árbitros e tribunais, que venham a considerar que só estão isentos os rendimentos efectivamente tributados no exterior — uma interpretação que vai contra o espírito do regime.

O problema da redação e o risco da interpretação restritiva

No regime anterior (RNH 1.0), o artigo 81.º do CIRS condicionava a aplicação do método da isenção a duas hipóteses claras:

· Para rendimentos da categoria A (rendimentos do trabalho), a aplicação da isenção exigia que o rendimento tivesse sido efectivamente tributado no Estado da fonte.

· Para rendimentos das categorias B, E, F e G (capital, imóveis, mais-valias, entre outros), bastava a mera possibilidade de tributação no Estado da fonte, prevista em acordos internacionais para evitar a dupla tributação.

Essa condição criava uma ligação lógica e técnica entre a existência ou potencial existência de dupla tributação e a aplicação do método da isenção, que, apesar de imperfeita, garantia coerência jurídica.

No entanto, a redacção actual do artigo 81.º, n.º 4, do CIRS está desligada de qualquer condicionalismo relativo à dupla tributação. Limita-se a dizer que o método da isenção se aplica aos rendimentos obtidos no estrangeiro por sujeitos passivos do RNH 2.0, mas sem mencionar a necessidade de existir efectiva ou potencial tributação no exterior.

Ora, isto significa que, tecnicamente, quando não há dupla tributação — por exemplo, quando o rendimento não é tributado no estrangeiro — não se aplicaria o método da isenção, logo, não haveria isenção de IRS em Portugal. Em outras palavras, a norma não isenta automaticamente esses rendimentos, criando um vazio jurídico perigoso e contraditório.

Consequências práticas e o iceberg da preguiça legislativa

Esta ambiguidade pode ser interpretada como a morte à nascença da isenção sobre rendimentos obtidos no exterior, minando o principal benefício fiscal do RNH 2.0 e colocando em causa a sua atractividade. Para os contribuintes, sobretudo profissionais qualificados e investidores estrangeiros, a insegurança jurídica gerada por esta falha é um entrave grave.

Se o regime perder esta vantagem fundamental, Portugal corre o risco de ficar atrás de outros países que oferecem condições fiscais claras e vantajosas para residentes qualificados. Isto acontece porque o sucesso do regime depende da confiança dos contribuintes na estabilidade e clareza do quadro legal.

Por outro lado, não vale invocar a tradição do RNH 1.0 ou a suposta vontade do legislador para justificar a actual redação, pois interpretar a lei fiscal não é o mesmo que ler novelas, mas sim proceder a uma aplicação rigorosa de normas legais específicas. O artigo 9.º, n.º 3 do Código Civil é claro: presume-se que o legislador empregou termos correctos e expressou adequadamente a sua intenção. Se tivesse pretendido uma isenção ampla, deveria ter escrito isso mesmo, e de forma clara e explícita, no artigo 58.º-A do EBF, e não numa norma avulsa do Código do IRS, e muito menos sem a necessária correcção.

O que fazer? um apelo à intervenção legislativa

Fica assim lançado o desafio: que o legislador corrija esta falha técnica com urgência, alterando o artigo 58.º- A do EBF para consagrar expressamente a isenção de IRS sobre rendimentos obtidos no exterior pelos residentes no âmbito do RNH 2.0, estabelecendo claramente as condições e eliminando a ambiguidade atual.

Enquanto tal não acontece, os contribuintes do RNH 2.0 ficam à mercê da interpretação do Fisco, árbitros e tribunais, o que pode resultar em conflitos legais, insegurança fiscal e perda de confiança no regime.

Este cenário remete-nos para a figura de Cassandra, a sacerdotisa troiana condenada a prever o futuro e nunca ser acreditada. O iceberg da preguiça legislativa está à vista, mas ninguém parece disposto a agir.

Se não houver mudança, Portugal poderá ver naufragar uma das suas melhores apostas fiscais.