
“Eram outros tempos.” É habitual ouvir a constatação quando o tema é a íngreme escalada do futebol jogado por mulheres e a comparação entre as condições de hoje com as de outrora. Mas não foi há tanto assim que Vera Pauw, ouvindo os zunzuns, fez questão de ir a Sneek, pequena cidade no noroeste da Holanda, quando ainda era permitido esse trato ao país. Na companhia do marido, a treinadora quis submeter ao algodão dos seus próprios olhos uma miúda a quem muito se gabava para atestar se valia o que se dizia dela. E numa equipa sub-17 local “só com rapazes”, viu que era “a playmaker” e “a melhor jogadora”.
Portanto, decidiu convocá-la para a seleção principal.
Tão senhora da sua maturidade, a comportar-se no campo com sapiência para lá da idade, que não duvidou em acelerar o galgar de etapas de Sherida Spitse, contou a então selecionadora à “BBC”. Confirmava-se o que ouvira falar a seu respeito. Proprietária de um pé direito valioso, rematava forte e fartava-se de correr no campo, puxava pelos demais e era, aos 16 anos, uma líder nata, reputação vinda pelo menos desde os 12, quando começou a ser capitã das equipas masculinas onde não tinha como não jogar: a liga neerlandesa feminina apenas seria fundada em 2007. Um ano antes, já se estreara pela seleção principal dos Países Baixos.
Ela precedeu esse mínimo olímpico para o futebol jogado por mulheres e nada devia a bater livres, dizem, fruto de a verem, quando era um palmo de gente, a ir praticar sozinha no clube. Esteve na génese do campeonato interno e contemporânea se fez dos maiores sucessos do país com a atitude de “dar tudo” que Sylvia Saint detetou logo, disse também à televisão pública britânica, nos primórdios Sherida Spitse na seleção. Os laivos a alguém que deixa a pele, o sangue, as tripas e outras partes no campo são repetentes ao longo da longeva carreira da neerlandesa que a tem, neste Campeonato da Europa, a jogar o seu nono torneio de seleções.
A participação equivaleu a mais história: os 19 minuto que jogou contra Gales na partida inaugural dos Países Baixos deram-lhe a 244.ª partida na seleção, número mais do que anormal para o futebol. Na quarta-feira, Sptise também entrou em campo durante a goleada sofrida frente a Inglaterra para o seu jogo 245. Uma média todo-o-terreno no seu auge, puxada mais para a defesa nas últimas épocas, Sherida já era a europeia mais internacional da história, seja qual for o género. A neerlandesa tem mais 23 internacionalizações do que Cristiano Ronaldo, o suprassumo deste capítulo entre homens que inaugurou a sua carreira internacional três anos antes.
O cume de Sherida não está na Suíça, na atual edição da prova. Aconteceu em meados da década anterior, quando jogou os minutos inteiros da campanha da sua seleção até à conquista do Europeu de 2017, marcando e assistindo na final contra a Dinamarca, ou no Mundial seguinte, quando os Países Baixos só foram superados, na decisão, pelas bicampeãs dos EUA. Antes durante e depois, a omnipresente na seleção laranja tão-pouco visitou os picos no futebol de clubes: saindo do VV Sneek da sua terra, andou pelo Heerenveen e Twente antes de emigrar para a Noruega, onde jogou pelo Lillestrøm e o Vålerenga para regressar, em 2020, ao Ajax de Amesterdão.
A descida do planalto não a retirou da seleção, nem despir a equipa do seu espírito seria aconselhável apesar do natural declínio das suas capacidades. O aviso vem de quem já a estimou por lá. “As equipas ganhadoras de provas têm de ter uma ou duas pessoas como a Sherida”, garantiu Mark Parsons, à “The Athletic”, mesmo que “não haja montes de super fãs” da jogadora. “Já estive em ambientes vencedores que foram além das capacidades e também em contextos que ficam aquém. A diferença, muitas vezes, são pessoas como a Sherida”, prosseguiu o selecionador dos Países Baixos entre 2020 e 2021, ao salientar a “liderança, a intensidade, o foco e a dedicação” da capitã.
A síntese do que mais valorizam em Spitse, o elixir da sua prevalência, é breve: “A sua habilidade para dar 100% em cada dia é incrível. E para exigir 100% das outras pessoas também.”
Nada tem a ver com o seu potente remate, a calma a passar a bola ou as garantias que dá a filtrar jogo. A recordista de golos (100) pelas laranjas, Viviane Miedema elogiou-a, antes do Europeu, precisamente por “ser uma líder”. Andries Jonker, o atual selecionador, tem-na como uma jogadora “única” e dona de “uma aptidão deslumbrante para ser capitã” que lhe vem do âmago: “No seu caráter existe essa liderança, esse ser a ‘boss’, em que diz à equipa se vamos, se pressionamos ou se esperamos.” É a demanda pelos píncaros de quem joga com ela, o apelo ao melhor de cada um, que mais ecos provoca.
Para ser uma polícia da exigência, Sherida Spitse mantêm-se num estado em que possa cobrar o mesmo aos outros. “Ela vai absolutamente dar o seu melhor, mas exigirá o melhor”, acrescentou Parsons. “Ao início, provavelmente haverá quem não entende o porquê de ser assim, mas depois vê que é por querer o melhor para a seleção.” Também à “The Athletic”, uma antiga internacional neerlandesa, Anouk Dekker, indicou que a capitã “é tão forte e fit” porque “consistentemente faz tudo para colocar o futebol em primeiro lugar”. Se a mais velha, internacional e reputada jogadora, por arrasto quem mais compreensível seria que tirasse o pé do pedal, insiste em não abrandar, que cara poderá vestir quem desacelere um pouco?
Há quem alinhe este seu mantra em manter os padrões no teto com a atitude de Christine Sinclair, canadiana que se retirou em setembro, aos 41 anos, com 190 golos - a melhor marca do futebol - e 331 jogos pela seleção. Melhor do que ela, apenas Kristine Kelly, que chegou às 354 internacionalizações pelos EUA. Algo de intransigência em conceder um miligrama de leviandade com o ‘dar tudo’ terão em comum com as outras cinco mulheres, todas norte-americanas, que também possuem mais partidas internacionais do que Sherida Spitse.
O combustível da duração da neerlandesa a este nível deu-lhe a 245 internacionalização contra a Inglaterra, com 45 minutos em campo para viver o quase atropelamento da sua seleção no segundo encontro da fase de grupos do Europeu. Vai escalando a montanhosa subida das partidas feitas por seleções, escarpa onde 29 mulheres já ultrapassaram as duas centenas de partidas quando apenas um homem, e sabemos quem, as imitou. Está para chegar o dia em que se possa sequer comparar os números deles com a prevalência delas.