O futebol podia não ter tido rivalidade. Essa coisa essencial, brutal e bela. Podia não a ter tido, e com isso não teria tido alma. Nem tragédia. O futebol podia ser um chá-dançante. Um Domingo com sandes de pepino e senhores de bigode a jogarem entre si. Todos contra todos. Ninguém contra ninguém. Uma confraria. Um clube de cavalheiros, onde se falhariam penáltis por decoro.
Não faltou muito para ser assim. Se um certo senhor Morley — Ebenezer, assim mesmo, como se tivesse sido inventado por Dickens — não tivesse adiado sucessivamente a fundação da Football Association até ter a maioria do seu lado, talvez o futebol tivesse sido outra coisa. Talvez ainda hoje se jogasse com as mãos, como no râguebi, modalidade-irmã, ou com as regras do hóquei em campo, ou segundo os códigos secretos de cada clube: em cada jogo uma negociação, em cada falta um dilema moral.
Mas não. Ao empurrar com a barriga, Morley salvou o futebol da sua vertigem insular. E com isso inventou a rivalidade. Porque só há rivalidade onde há regras comuns. Onde dois jogam o mesmo jogo. No mesmo campo. Com a mesma alegria.
E os clubes passaram a ser emblemas.
Em Portugal, há uma singela formulação que traduz esta ideia com precisão: Benfica x Sporting.
No princípio não era o Sporting o grande rival. Era o CIF. E os primeiros jogadores que saíram do Sport Lisboa não o fizeram por estarem zangados. Fizeram-no porque era o mais sensato a fazer. E a rapaziada da Farmácia Franco já tinha idade para ter juízo. O Sport Lisboa tinha ficado sem campo. O Sporting tinha isso e muito mais. Balneários. Chás-dançantes. Até eu iria, se pudesse.
Mas há sempre um gesto que inaugura alguma coisa. Esse gesto, na história da rivalidade verde-rubra, aconteceu a 7 de Dezembro de 1907: O primeiro jogo S.L. [B.] x S.C.P.
Ao intervalo o Sporting vencia por 1-0, golo de Cândido Rosa Rodrigues. Chove a cântaros. O Sporting recolhe à cabine. O Sport Lisboa fica em campo, a apanhar uma molha. Segunda parte: golo de Corga a empatar para o Sport Lisboa e o resultado a fixar-se num 2-1 para o Sporting, com um autogolo de Cosme Damião. Não é maravilhoso? Estava acesa a centelha.
Se em 1907 se semeia a rivalidade, em 1914 ganha dentição completa. Artur José Pereira, génio dos anos 10, suspenso pelo Benfica por faltar aos treinos, é contratado pelo Sporting com direito a ordenado e banho quente. O primeiro futebolista a ser pago em Portugal. Mais tarde, Artur José Pereira viria a fundar Os Belenenses.
Ou em 1993, naquele Verão angustiante que os jornais chamaram Quente. O Benfica em crise e o Sporting a pescar à linha, quase arrasa o rival, leva jogadores, gera pânico. Só a fidelidade de Rui Costa e o vacilo controlado de João Pinto travam o colapso. A resposta, como sempre, chega dentro do campo: 6-3 em Alvalade, João Pinto em transe, como quem redige a acta de um motim.
A rivalidade é um romance com capítulos em aberto. Cada pessoa relatará os acontecimentos como sabe e acredita. Cada memória é uma ferida. Cada craque desviado é um sequestro contado através de dicionários próprios, compêndios de sabedorias paralelas, como se viessem de planetas distintos. Como acontece, por exemplo, nos episódios à volta de Eusébio. Para os benfiquistas, uma conquista, na pior das hipóteses um “desvio”. Para os sportinguistas, um “rapto”.
Até as fundações são uma fricção de arquivos divergentes. Cosme Damião dizia, numa entrevista a "A Bola" em 1945, que o Sport Lisboa nunca acabara. Cândido Rosa Rodrigues, o “Catatau”, garante à "Flama", em 1964, que o clube se dissolveu, e que a fusão com o Grupo Sport Lisboa foi só despeito de um jogador que, “infelizmente” não tinha lugar no Sporting. A ironia? Rosa Rodrigues vinha do Grupo dos Catataus. Damião, da Associação do Bem. E é da junção desses dois conjuntos que nasce o Sport Lisboa. Eles, que começaram separados, uniram-se para se separarem outra vez. Cândido e Cosme, os marcadores do primeiro dérbi: com um resultado que é uma espécie de capicua de irmãos apartados. Há amor bastante para fazer da verdade um espelho partido.
Haverá sempre razões para nos queixarmos. Mas, no futebol como na vida, é levantar o queixo e seguir em frente com as dores a doer. Tudo passa. Por isso escrevo este texto como se não tivesse havido jogo no Domingo passado. Como se não estivesse fulo com as patifarias que vi, com estes dois olhos que a terra há-de comer. Ou como se não tivesse, neste momento e ainda, a cabeça em forma de um certo fruto da família das cucurbitáceas. É que Segunda-feira recebi um livro pelo correio. Enviado por um amigo sportinguista, e da sua autoria (“A Ganhar ou a Perder — um ano de Sporting”, vão comprar). Na folha de rosto, a inscrição: "Vestimos camisolas de cor diferente, mas unidos estaremos sempre no sonho do futebol popular, contra o futebol moderno." Um abraço, Mário Lopes.
Lembrei-me de uma certa fotografia. Linda, linda, linda. Um recorte que encontrei um dia na Feira da Ladra. Estádio Nacional, final da Taça 1951/52. As duas equipas perfiladas. À sua frente, um lençol de água. E, nesse espelho natural, vêem-se duplicadas. Sporting e Benfica. Rivais, mas juntos. Reflectidos, reconhecendo-se. Complementares e impossíveis.
É que só há espelho onde há outro. Ebenezer Morley sabia-o. Apesar de tudo, o futebol seria mais futebol assim. Com essa espécie de amor depois do amor a que chamamos rivalidade.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.