No tempo em que os jornais ainda eram jornais, a contracapa do Público trazia sempre uma tira do Calvin & Hobbes. Lembram-se? Era a melhor coisa. Numa delas o pai do Calvin — um sádico doméstico que confundia pedagogia com tortura —, quando perguntado qual a razão das fotografias antigas serem a preto-e-branco, responde com crueldade serena: eram a cores, Calvin. Fotografias a cores de um mundo a preto-e-branco.
Pois é isso.
Nas roulottes e nas bancas de cachecóis; sobre as balizas e os painéis publicitários da JVC e da Robbialac; nos relvados, nas páginas dos desportivos. Tudo se revelou na sua natureza enlutada: morreu Diogo Jota e até as camisolas dos clubes, céus, sempre vivazes, sempre excessivas, afinal eram cinzentas.
Fiquei triste e fui ler o Rubem Braga. O texto era sobre Obituários, ou melhor, Canhenhos Fúnebres. Título venturoso, arqueado, a cheirar a velório. Braga dizia que ficava desapontado quando não conhecia os defuntos. Morto desconhecido, dizia ele, não é notícia.
E é aqui que quero chegar: ninguém conhecia Diogo Jota. Quer dizer, dos jogadores que todos conhecemos, Diogo Jota era o mais desconhecido.
Num tempo em que se fala do futebol como “montra”, o jogador do Liverpool era o avançado incógnito. Uma condição tão natural nele, quanto anormal nestes dias em que tudo se coloca à disposição do olhar alheio. A sua vida era um enigma modesto: a terra de onde veio, o clube onde se formou, a namorada de sempre com quem tinha casado ainda ontem, os três filhos, tudo era invisível. Invisível e perfeito. Até a tragédia de ter um irmão mais novo chamado André Silva, jogador no Penafiel. Morreram juntos. Tudo isto morava no esplendor invertido do anonimato. Até que o anonimato se fez carne e nos esmagou.
Dirão que tinha redes sociais. Que partilhava fotografias da família. Que isto e aquilo. Tudo certo. Mas refiro-me a essa espécie de silêncio interior, que resiste à exposição. Que prova que é possível partilhar sem se exibir.
Jota era o anti-estrela. O anti-fama. O anti-tudo. Era o avesso do futebol moderno. Num tempo em que cada jogador acha que precisa de ser os três éles de George Best — lendário, lindo e licoroso —, Diogo respondeu com uma letra. Só mais uma letra do abecedário. Podia ser outra. Mas era o Jota. Ele mesmo.
Neste tempo de superexposição, de monitores e de notícias e de conteúdos e de coisas; neste tempo de todas as caixas de todas as pandoras sempre — sempre — abertas; neste tempo sem reserva, nem silêncio; só uma obtusidade descomedida como esta — com carros, com juventude, com insolência — seria capaz de abanar o torpor digital em que vivemos. Uma coisa à James Dean mas ao contrário. Sem brilho, só dor. Mas depois lembrei-me de nós.
Do futebol que jogávamos no recreio da escola. Daqueles ringues. Durante 10 minutos éramos super-heróis. Para depois voltarmos para a sala de aula, todos molhados das poças, todos transpirados, todos felizes. E apercebi-me que o Diogo era um de nós.
Jogava como nós jogávamos. Sem afectação, sem pose, mas com verdade. Nos grandes palcos que iluminou, em vez de relva, foi por cima do betão polido desses ringues que Jota continuou a correr. Directo ao assunto. Num misto de brilho e funcionalidade. Não era James Dean nenhum. Não cometia essa imprudência; longe disso. Era um Gene Hackman. Um tipo decente. Com a honradez do homem quotidiano.
A morte do Diogo Jota traz este paradoxo. Como é que alguém que não conhecíamos desperta tanta comoção? A resposta é que na lista de coisas que não sabíamos faltava o fundamental: não sabíamos que gostávamos dele. É que no futebol de ringue não havia fenómenos do outro mundo. Não havia Cristianos nem Messis, nem Eusébios nem Pelés. Havia o Sardinha. O China. Havia ele. Havia nós.
Tudo em Jota nos reflecte. Não é alto. Nem baixo. Nem gordo nem magro. Nem feio nem bonito. É o Diogo do 4.º Esquerdo, que joga FIFA com o irmão. Um miúdo obediente. Um rapaz esforçado. Um tipo impecável. Filho do Sr. Silva, que trabalha na fábrica. Vão à Missa e pagam impostos. Pessoas sérias. Gente normal.
Por isso é que os Oasis — os Silvas do 4.º Esquerdo da Britpop — lhe dedicaram Live Forever. Não foi por uma ilusão de imortalidade. Foi para dizer a dois miúdos também do Norte, de outro país, mas da mesma cepa: Maybe you're the same as me. Eram mesmo.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.