Podemos imaginar um mundo sem fronteiras, em que todas as pessoas podem circular livremente em busca de uma vida melhor, escolher o local de residência e aí participar nas decisões mais importantes para o destino da comunidade.

Não é esse, porém, o mundo em que vivemos. Segundo o Direito Internacional – cujo declínio hoje todos lamentamos –, os Estados gozam da prerrogativa soberana de definir quem são os seus cidadãos. Desenhar a linha que separa aqueles que integram a comunidade nacional – e são titulares de todos os direitos políticos – e os estrangeiros, que o Estado pode (ou não) autorizar a entrar no seu território.

Os Estados tomam essa tarefa muito a sério, certificando-se de que só podem aceder à nacionalidade pessoas que têm com a comunidade política uma ligação efetiva e genuína. Fazem-no por duas vias diferentes. 1) No momento do nascimento, as conexões utilizadas são a ascendência e o território, com diversas combinações. 2) Mais tarde na vida das pessoas, as conexões dominantes são a filiação, a adoção, o casamento e a residência. Neste último caso, o processo denomina-se “naturalização”. Por regra, inclui a realização de testes, sobretudo sobre língua e cultura, destinados a aferir o nível de integração social do requerente.

A proposta do Governo trabalha nestes dois planos, procurando corrigir óbvias distorções da Lei da Nacionalidade ainda em vigor, introduzidas em 2018 e 2020.

Primeiro, pretende garantir que a nacionalidade portuguesa não é automaticamente atribuída a todos aqueles que nascem em território português, ainda que os respetivos progenitores tenham acabado de chegar ao país ou até que aqui se encontrem em situação irregular. O Governo exige 3 anos de residência legal de um dos progenitores. Com a mobilidade que caracteriza o mundo contemporâneo, o local de nascimento é muitas vezes puramente acidental.

Segundo, em matéria de naturalização, são quatro as alterações principais: A) Encerrar o procedimento excecional de reparação histórica destinado aos judeus sefarditas – marcado, aliás, por sérias fraudes. B) Alargar o prazo de residência em território nacional, dos atuais 5 anos, para 7 ou 10, consoante o requerente seja ou não cidadão lusófono. É certo que 10 é o dobro de 5, mas foi esse o prazo que vigorou sem contestação até 2006. C) Alargar o conteúdo do teste de acesso, juntando ao domínio da língua o conhecimento da cultura portuguesa e dos direitos e deveres associados à cidadania. D) Garantir que apenas o tempo de residência legal em solo nacional é contabilizado para efeito de aquisição da cidadania, eliminando as vias paralelas – mais uma vez, criadas em 2018 e 2020 – de acesso sem prévio título válido do requerente.

Contudo, nada disto parece interessar. Porquê? Porque a proposta do Governo sobre perda da nacionalidade padece, supostamente, de uma inconstitucionalidade grave. Para que a proposta fique clara: a possibilidade de um juiz, ponderando as circunstâncias do caso concreto, aplicar uma sanção acessória de perda da nacionalidade portuguesa adquiria há menos de 10 anos, a uma pessoa que tem outra nacionalidade, na sequência da sua condenação em pena de prisão efetiva pela prática de um dos crimes graves elencados pela lei.

É muito curiosa a acusação de inconstitucionalidade. Desde logo, é a própria Constituição que prevê o instituto da perda da nacionalidade.

Basta ler o nº 4 do artigo 26º da Constituição: “a privação da cidadania (...) só pode efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamentos motivos políticos”. Ora, a lei geral e abstrata exigida pela Constituição é justamente a Lei da Nacionalidade. E, como o Código Penal não prevê crimes políticos, a condenação pela prática de um delito grave jamais pode ser considerada um “motivo político” ou, sequer, um motivo arbitrário. Além disso, a Convenção do Conselho da Europa sobre Nacionalidade, um dos mais importantes instrumentos internacionais que vincula Portugal neste domínio, prevê um amplo conjunto de fundamentos que permitem aos Estados decretar a perda da sua nacionalidade, desde que a pessoa em causa não se torne apátrida. Esses fundamentos vão da simples aquisição de outra nacionalidade – coisa que Portugal nunca fez nem vai passar a fazer –, a condutas prejudiciais para os interesses vitais do Estado, passando pelo desaparecimento superveniente de uma ligação efetiva ao país, por exemplo por residência prolongada no estrangeiro.

Neste tipo de controvérsias públicas, o derradeiro argumento a ser convocado é sempre o do princípio da igualdade. Foi assim formulado: introduz-se uma desigualdade entre cidadãos de origem e cidadãos naturalizados. Portanto: cidadãos de primeira e cidadãos de segunda. Acontece que não se “introduz” coisa nenhuma, porque a distinção material entre as duas realidades em comparação está lá desde o início, desde o momento do nascimento (aliás, há pelo menos 16 anos, quando se atinge a idade da imputabilidade penal), em que as conexões determinantes para a atribuição da nacionalidade são a ascendência e o território – e não apenas a residência, que por ser uma conexão menos forte é sujeita a um duplo teste de continuidade e de integração comunitária.

De resto, se existisse mesmo um problema de desigualdade, poderia resolver-se alargando o regime agora proposto para a perda da nacionalidade também aos cidadãos de origem. Na verdade, as desigualdades não se superam apenas pelo alargamento do regime mais favorável. Tipicamente, ultrapassam-se também pelo alargamento dos regimes menos favoráveis. Mas, curiosamente, não há propostas nesse sentido. Ainda bem!