A partir das notas enigmáticas que recuperou das mãos de um ex-soldado sul-africano, o compositor angolano desenvolveu o projeto tecktonik:TOMBWA no qual o colonialismo português se entrelaça com a guerra de fronteira e os segredos do programa nuclear sul-africano, rompendo o silêncio imposto por décadas de conflito e censura.

O dossiê com as notas foi-lhe entregue na África do Sul, em 1998, quando gravava num hospital psiquiátrico e o antigo combatente lhe colocou nas mãos os documentos manuscritos.

"Ele disse: 'Se és de Angola, tens de ter isto contigo'", recorda o músico.

Em entrevista à Lusa, o artista desvendou como os fragmentos manuscritos serviram para reconstruir o trabalho de Augusto Zita N'gongwenho, antropólogo sobre o qual pouco ou nada se sabe, desaparecido em circunstâncias suspeitas.

A história remonta aos anos 80, altura em que Angola vivia uma guerra fratricida e se defrontava com incursões sul-africanas na sua fronteira sul.

 "A África do Sul tinha comandos que atravessavam a fronteira, sequestravam, torturavam e matavam civis e supostos apoiantes dos movimentos de libertação", destaca o compositor.

Augusto Zita N'gongwenho parece ter sido apanhado no meio desta violência.

As suas últimas notas são de 1987, quando os sul-africanos mantinham ainda bases no deserto do Namibe e lançavam operações a partir de zonas como o Virei e o Cunene (sul de Angola).

"Controlavam zonas no sul de Angola, usavam bases na Namíbia e até faziam operações a partir do deserto do Namibe e do Kalahari", realça Victor Gama para quem as lacunas em torno de Zita refletem as de uma história maior: a presença sul-africana em Angola, o apoio de potências ocidentais ao 'apartheid' e o projeto de armas nucleares desenvolvido pela África do Sul que incluiu testes secretos ao largo da Antártida, que deram origem ao chamado incidente Vela.

 "O clarão que se viu em 1979 foi um desses testes, mas tudo permanece censurado", denuncia Victor Gama que se inspirou no incidente para a sua peça "Vela 6911".

A memória desses e de outros anos é um arquivo quase inexistente: "Em Angola, desapareceram milhares durante o 27 de maio de 1977 (alegada tentativa de golpe que espoletou uma luta entre fações rivais do MPLA) e noutras operações. Mas muito pouco está documentado".

"A nossa história está a ser feita de secretismos, censura e apagamentos", afirma Victor Gamal lamentando que a história contemporânea de Angola esteja "em vias de ser apagada".

Augusto Zita foi reconstruído a partir das incertezas, desconhecendo-se até se este era o seu nome verdadeiro. "Pode ter sido um nome de guerra, um pseudónimo, um gesto de proteção", admite o criador musical.

Mas as ideias que deixou, transformadas num projeto de arte contemporânea, são poderosas e falam de colonialismo, de utopia e de resistência.

Quando Victor Gama começou a decifrar o conteúdo das notas -- já nos anos 2000 - descobriu uma tese sobre a origem do colonialismo europeu, que ligava a paisagem do Namibe ao livro 'A Utopia', de Thomas More, que Victor Gama descreve como "um modelo de colonialismo embriónico", uma conexão inesperada que se tornou o fio condutor do projeto.

O projeto tecktonik:TOMBWA, retoma esta ideia, percorrendo as ruínas de casas coloniais ao longo de uma estrada isolada, que surgem como "cicatrizes no deserto".

Na obra de Victor Gama, onde se fundem sons e imagens, as ruínas coloniais e as paisagens isoladas do Namibe e do Tombwa testemunham a violência do colonialismo e das guerras, ajudando a reconstruir o passado.

"Este projeto não pretende dar respostas definitivas sobre o destino de Augusto Zita", reconhece o compositor Gama, acrescentando: "Mas importa que a sua memória e as suas ideias -- a forma como ele via a relação entre território, colonialismo e identidade -- sejam preservadas e partilhadas."

Porque, afirma, quando a história oficial se cala, as paisagens, os sons e as ruínas continuam a falar.

 

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