
A prevalência da doença renal crónica (DRC), em Portugal, é aproximadamente de 11%, mas dois terços dos doentes desconhecem o diagnóstico. O que contribui para tal?
Um dos motivos para o desconhecimento do diagnóstico é a dificuldade da população em aceder a cuidados médicos regulares. Há grandes franjas da população sem médico de família que dependem de médicos de recurso para resolver problemas pontuais ou, em alguns casos, da ida aos serviços de urgência. Nestas circunstâncias é muito difícil garantir que o diagnóstico é efetuado. Outro motivo, mais técnico, está relacionado com a conhecimento dos médicos das análises habitualmente utilizadas para avaliar a função dos rins. A creatinina sérica (o valor mais utilizado para este fim) é pouco sensível para identificar alterações da função renal nas fases iniciais da DRC e, em alguns doentes, o resultado pode estar dentro de valores de referência, mesmo que exista algum compromisso da função renal. Esta limitação é subvalorizada por muitos médicos.
A forma de ultrapassar esta limitação é utilizar fórmulas matemáticas para calcular a taxa de filtração dos rins, mas nem todos os médicos as utilizam. A pesquisa de albumina numa amostra de urina, por si só, não é suficiente para diagnosticar precocemente a DRC, devendo ser calculada a relação albuminúria/creatininúria, mas raramente são pedidos ambos os doseamentos. Pelos motivos referidos, a DRC não é detetada nas fases iniciais e este diagnóstico só é registado em fases avançadas da doença.
Quais as consequências do atraso do diagnóstico na qualidade de vida e no prognóstico?
A maior parte das doenças renais não dá sintomas nas fases iniciais. Se forem diagnosticadas e tratadas no início têm bom prognóstico e podem não evoluir. Pelo contrário, se não forem tratadas têm tendência a progredir, mais ou menos rapidamente, e a deixar alterações permanentes na função dos rins. Se a doença permanecer durante alguns meses, os rins desenvolvem cicatrizes que não são recuperáveis e o prognóstico é pior. Assim, esta doença a que chamamos DRC não é mais do que uma consequência possível de qualquer doença renal que não foi tratada ou não respondeu ao tratamento nas fases iniciais, levando a lesões de cronicidade (fibrose e atrofia) dos rins.
Por outro lado, o diagnóstico precoce da DRC permite ter cuidados extra com os doentes, de forma a prevenir complicações da doença. A função renal destes doentes é mais frágil dos que os indivíduos com função renal normal; eles têm maior risco de ter episódios agudos de perda de função renal e são necessários cuidados com a utilização de medicamentos que possam prejudicar a função renal.
Por último, mas não menos importante, os indivíduos com DRC têm um risco muito aumentado de desenvolver outras doenças, principalmente doenças cardiovasculares incluindo insuficiência cardíaca, enfartes do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais. Na prática, o risco de vir a ter uma destas complicações chega a ser maior do que o risco de vir a perder a função renal por completo e necessitar de diálise. Têm também maior risco de perda das capacidades mentais e de desnutrição. Tudo isto contribui para diminuição da qualidade de vida e diminuição do número de anos de vida.
“Quando os doentes chegam à fase mais avançada e necessitam de diálise, o custo é aproximadamente de 25.000 euros por ano, mais as despesas com transportes”
E em relação aos custos associados?
Os custos da doença renal crónica são extremamente elevados. Podemos dividi-los em dois grandes grupos: custos diretos, relacionados com o tratamento, os quais são relativamente fáceis de calcular, e custos indiretos que são praticamente incalculáveis.
Os custos diretos com o tratamento aumentam, gradualmente, à medida que a função renal se vai agravando. Quando os doentes chegam à fase mais avançada e necessitam de diálise, o custo é aproximadamente de 25.000 euros por ano, mais as despesas com transportes. A este valor têm de ser adicionados os custos relacionados com internamentos e com o tratamento de outras doenças que são mais frequentes nos doentes renais, incluindo insuficiência cardíaca, enfartes do miocárdio, acidentes vasculares cerebrais, infeções, entre outras.
Os custos indiretos são mais difíceis de calcular e muito superiores. Há custos para a sociedade, porque os doentes com DRC avançada deixam frequentemente muito cedo a vida profissional ativa, sobrecarregando os sistemas de Segurança Social. Nestes casos, também há custos pessoais elevados, porque o rendimento disponível para os doentes e para as suas famílias é menor. Por último, não conseguimos calcular os custos relacionados com o sofrimento pessoal dos indivíduos afetados.
“A interação entre os médicos dos cuidados de saúde primários e os especialistas de Nefrologia pode ter um papel decisivo na mitigação do problema da DRC em Portugal”
De que forma se pode prevenir o impacto global da DRC?
O impacto da DRC só pode ser mitigado alterando, radicalmente, o modo como se pensa esta doença. O foco tem de ser a prevenção e a intervenção nas fases precoces da doença. O tratamento é importante e não podemos deixar de investir no desenvolvimento de novas terapêuticas, que permitam tratar mais eficazmente as doenças renais ou impedir a progressão dos casos mais avançados, mas se quisermos fazer verdadeiramente a diferença teremos de investir muito mais na prevenção e no diagnóstico precoce.
A maioria dos casos de DRC é consequência de doenças comuns, que devem ser tratadas adequadamente com custos reduzidos (principalmente, se atendermos às consequências do seu não tratamento!). Concretamente, estamos a falar da diabetes mellitus, da hipertensão arterial e da obesidade. Um número também importante de casos de DRC é consequência de glomerulonefrite crónica e outras doenças renais que evoluíram silenciosamente e poderiam ter sido detetadas por métodos de rastreio sistemático.
É necessário sensibilizar os médicos dos cuidados primários de saúde para a necessidade de utilizar adequadamente os instrumentos que têm ao seu dispor para fazer o diagnóstico nas fases iniciais: o cálculo da taxa de filtração glomerular, utilizando as fórmulas recomendadas, e da relação albumina/creatina numa simples amostra de urina (através do pedido dos doseamentos de albumina e creatinina urinárias). A presença e registo sistemático deste diagnóstico deve implicar cuidados acrescidos para proteger a função renal e, quando necessário, a referenciação para cuidados especializados.
Também é necessária uma mudança de paradigma da própria especialidade de Nefrologia. Tradicionalmente, esta especialidade está muito vocacionada para o diagnóstico e tratamento de situações complexas. Isto é importante, mas se quisermos ter uma intervenção com maior impacto na população e no controlo da doença, só o conseguiremos se a especialidade adotar práticas de Nefrologia Preventiva.
Qual o papel da Medicina Geral e Familiar no processo e como deve existir maior articulação entre o médico de família e o nefrologista?
A interação entre os médicos dos cuidados de saúde primários e os especialistas de Nefrologia pode ter um papel decisivo na mitigação do problema da DRC em Portugal. Sabendo que pelo menos 10% da população tem DRC em algum dos seus estádios de evolução, facilmente se conclui que não seria possível tratar todos estes doentes em consultas de especialidade. É importante definir quais os doentes que devem ser referenciados para consulta de especialidade. Na Unidade Local de Saúde onde trabalho, os critérios de referenciação estão bem definidos e foram amplamente difundidos junto dos médicos de família. Esta definição é fundamental para facilitar o acesso a cuidados especializados aos doentes que deles verdadeiramente necessitam, permitindo que os restantes sejam seguidos pelos seus médicos de família.
Contudo, este objetivo tem dois problemas: primeiro, muitos doentes não têm médico de família e este problema não tem uma solução fácil a curto prazo; segundo, alguns médicos de família relatam pouco à-vontade para seguir doentes renais e este facto implica grande cooperação dos nefrologistas com os colegas de Medicina Geral e Familiar, eventualmente através de mecanismos de consultadoria nas unidades de saúde extra-hospitalares.
MJG
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