
Há algo de profundamente terapêutico em Gouveia e Melo. A voz baixa. A compostura de manual. A linguagem filtrada por moderação e vaselina institucional. É o candidato dermo-aprovado: não fere, não cola, não marca. Passa como água e, por isso, é adorado. Num país esfolado por décadas de fricção política e promessas incumpridas, o seu silêncio parece bálsamo. E talvez seja. Está entre o “socialismo” e a “social-democracia”, entre a pobreza que precisa de combate e o desenvolvimento que não se define, entre o “sim” e o “não”, onde habita a fórmula mágica do “não concordo nem discordo”. É um centro confortável. Tão confortável que ninguém precisa de sair do lugar.
Na entrevista com Sandra Felgueiras, confirmou o guião que há meses vinha a testar em doses homeopáticas. Nada surpreendeu — e essa foi a grande revelação. Disse que não faria como Marcelo, que não teria demitido António Costa, que não derrubaria um governo com maioria absoluta. Para se sustentar, invocou a Constituição com a confiança de quem se senta nela como num puff. “A Constituição nada diz sobre isso [a decisão de Marcelo]”. E, depois, com a mesma serenidade, contradisse-se. À pergunta de Sandra Felgueiras sobre qual seria a sua linha vermelha, responde: "Desvirtuar a promessa feita ao povo português." Eis o novo artigo constitucional invisível: um princípio vago, aromático, absolutamente arbitrário. A Constituição, essa, permanece muda. Quem mede a distorção? O Presidente? Os comentadores? A sondagem de domingo?
E se Montenegro prometer médicos de família para todos (como prometeu) e falhar (como falhou)? Teremos desvirtuação? Ou apenas um ligeiro desalinho técnico? Gouveia e Melo não esclarece. Não precisa. Porque o seu projeto não vive da resposta, vive da suspensão. É o reflexo de um país cansado de perguntas difíceis. Um país que já não quer rupturas, apenas consolo. Uma candidatura feita de exaustão. E, nesse cansaço, a ambiguidade ganha estatuto de virtude. Quanto menos se compromete, mais espaço ganha. Quanto menos risco corre, mais seguro parece.
É fácil perceber o apelo. E, mais do que isso, é fácil reconhecer a estratégia: quando não há substância, não há atrito. Se não houver posição, não há oposição. E é uma estratégia inteligente. Gouveia e Melo é uma tela branca onde todos (todos, todos…) podem nela projectar os seus medos, esperanças ou frustrações. Enquanto for tela, funciona. Afinal, nada consola mais o público do que reconhecer cada palavra antes de ser dita.
Mas aqui é que se torna interessante. Porque o Almirante não é o rosto de um novo centro político. É o rosto de um centro emocional. Representa a vontade coletiva de que alguém tome conta disto sem levantar pó, sem fazer grandes perguntas, sem aborrecer demasiado. É o centro destilado: o que já não precisa de ideias, porque se apresenta com temperamento. Não um projeto, mas um instinto. A ausência de conflito como proposta nacional.
E é por isso que, enquanto os partidos tradicionais se esfarelam, Gouveia e Melo sobe. O Chega cresce pela raiva. O Almirante, pelo alívio. São respostas opostas à mesma falência: a de um regime que deixou de representar. Ventura canaliza o ressentimento; Gouveia e Melo oferece a farda. Um grita "o país está a arder"; o outro promete apagar o fogo sem fazer barulho. Ambos são produto do mesmo impasse, duas faces da mesma anemia.
A questão, por isso, não é só sobre como pode um candidato do centro triunfar quando o centro se desfaz. A questão é outra: o que é que sobra de um sistema democrático quando o centro já não é político, mas terapêutico? Quando se torna um spa institucional, onde ninguém levanta a voz e todos recebem toalhas quentes?
Gouveia e Melo é a resposta institucional à crise institucional. Surge como um último pacto de silêncio: deixem-no ir para Belém, e talvez as coisas se acalmem. Talvez o sistema sobreviva mais um ciclo. Talvez a democracia possa continuar a funcionar em piloto automático, com declarações serenas, fotos com bandeiras, e veto ocasional a medidas excêntricas.
O Almirante tranquiliza porque se apresenta como não-político. Mas é precisamente por isso que é político no seu sentido mais profundo: aparece como o rosto do que resta, quando já ninguém acredita no resto.