A estratégia será sempre uma parte fundamental do futebol. Olhar para o adversário. Perceber o que o fere, cutucar os seus pontos fracos, sugar-lhe a alma. Porém, por vezes basta soltar o talento, dar-lhe espaço e ordem. É possível que a seleção nacional que esta quarta-feira matou vários borregos em Munique, vencendo a Alemanha pela primeira vez em 25 anos e ganhando na Alemanha de novo 40 anos depois daquele remate cheio de alma de Carlos Manuel, tenha sido um pouco de ambas. Difícil dizer se teria sido a equipa da 2.ª parte se não existido a 1.ª, mas entre um plano e a habilidade forjou-se uma vitória importante para o arejo dos fantasmas nacionais, para afastar os sentimentos de inferioridade. Sim, Portugal tem uma equipa que, em querendo (e tantas vezes parece não querer), pode ser bem melhor que a Alemanha. E está na final da Liga das Nações.

E está na final da Liga das Nações com um misto de nostalgia histórica, de arrojo (não total, mas já lá vamos) e de um par de exibições individuais extraordinárias, e extraordinárias foram não por causa de números, mas porque beneficiaram decisivamente o coletivo. Nuno Mendes, acabadinho de ganhar a Champions, voltou a ter em Munique o seu quintal. Em forma, sem as arreliadoras lesões, é o melhor lateral esquerdo do mundo, porque tem tudo, capacidade defensiva, soluções no um para um, arranque, potência, velocidade. Vitinha, deixado no banco por Martínez, trouxe a simplicidade, o andar nas nuvens e o futebol teleguiado. E Francisco Conceição, também entrado a meio para destrambelhar aquele lado direito, marcando, como o seu pai há 25 anos, frente a uma Alemanha com muito talento em Wirtz ou Musiala (neste jogo de fora), mas pecados capitais como Tah, lento, pesado, uma docinho para a velocidade dos extremos portugueses.

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Portugal acordou de um torpor estratégico depois do golo alemão, aos 48’, jogada voluptuosa entre Kimmich e Wirtz, com o veterano do Bayern a picar a bola para a entrada do mais jovem de Leverkusen área adentro, terminando com um coquete toque de cabeça para a baliza. Roberto Martínez surpreendeu ao colocar João Neves a lateral direito, mas com ordens para vagabundear por todo o campo em momento ofensivo (até a avançado centro chegou a aparecer). A ideia seria apostar numa saída a três, desconcertando a seleção alemã. A entrada portuguesa foi, à falta de melhor adjetivo, afirmativa. Pelo menos mais afirmativa do que seria de esperar de uma seleção que tende a encolher-se perante camisolas brancas e pretas tedescas. Os primeiros 15 minutos seriam de descoberta mútua, futebol transformado em dating app. Que estão estes meus adversários a tentar fazer?

Portugal aplicava uma pressão considerável, que valeu alguns ataques rápidos perigosos. Neto foi dos mais eléticos nesta fase: aos 7’ deixou uma bola redondinha na área que Ronaldo rematou quando Bruno Fernandes talvez estivesse mais habilitado a transformá-la em golo. E depois tentou ele próprio a jogada individual, depois de passe prodigioso de Nuno Mendes, mas foi bem travado por Koch. A Alemanha tentava mais pela certa, com Mittelstadt a pressionar o lado direito de João Neves.

O jogo estava móvel, interessante. A partir dos 15’, a Alemanha obrigou a linha de seis de Portugal a afundar, a encontrar brechas no corredor central. Brilhou aí Diogo Costa, a tirar golos a Woltemade e Goretzka, evitando que o carrousel atacante alemão tivesse consequências. Mas o lado estratégico, tático, corroía, de parte a parte, momentos mais extravagantes. Era como se existisse um impasse.

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Talvez em tempos um impasse contra a Alemanha não fosse mau, todos nós nos lembramos de dois ou três traumas com a Mannschaft, mas, com estes jogadores, pode-se pedir mais do que sobreviver. A seguir ao golo da Alemanha e de um primeiro vislumbre de reação com um remate perigoso de Bruno Fernandes, Roberto Martínez mexeu. Resolveu não morrer com a sua ideia. Foi-se o elemento surpresa da nuance João Neves pela direita. Só que foi precisamente quando deixou de lado a estratégia que a seleção se libertou.

O golo de Francisco Conceição, aos 63’, deu o murro na mesa definitivo para o que viria a ser uma exibição em crescendo de Portugal. À fineza de Trincão, que não estava a encontrar o seu espaço, Conceição respondeu com o seu futebol mais áspero, de lixa a passar por pernas de defesas alheios. Recebeu na direita, fletiu para o meio e rematou ainda bem antes de entrar na área. As memórias, que às vezes surgem adocicadas, dizem que o golo não foi assim tão diferente do 2-0 de Sérgio em Roterdão há 25 anos, minus o erro garrafal de Kahn: aqui não havia mesmo hipótese para Ter Stegen.

Ao golo seguiu-se uma boa reação: Portugal queria mais, a léguas da equipa arrogantemente amorfa dos dois jogos com a Dinamarca. Vitinha foi subindo de rotações (acabou o jogo a fazer dribles em cima de adversários, o que diz tudo), Nuno Mendes tomou conta do jogo - nunca a frase “A seleção de Mendes” foi tão verdadeira. Cinco minutos tinham passado do primeiro golo quando o lateral enganou um adversário, usou Bruno Fernandes como pivô, abrindo-se então uma passadeira pela pesada defesa alemã. O cruzamento saiu perfeito para o pé de Cristiano Ronaldo não ter de fazer mais do que encostar.

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O mais impressionante desta vitória histórica, porque rara, até pode muito bem ter sido o que aconteceu depois da reviravolta. É claro que a Alemanha foi atrás do resultado e que, uma ou outra vez, Portugal afundou as linhas mais do que o ideal. Sim, houve a bola ao ferro de Adeyemi. Mas a seleção nacional pareceu sempre em controlo e, mais, com fome, o que não tem sido comum com Roberto Martínez. A querer mais golos, mais dribles, mais lances de perigo. Chico podia ter marcado de novo aos 82’, depois de um passe do outro lado do planeta de Vitinha e depois foi Ter Stegen a salvar uma e outra vez a sua equipa, longe, muito longe da excecionalidade alemã, que sempre meteu medo mesmo em gerações menos interessantes. Depois do golo de Wirtz, Portugal não teve medo da Alemanha, jogou aquilo que deveria jogar sempre, um futebol solto, simples, dinâmico.

Mais uma vez, Portugal supera-se contra adversários aparentemente insuperáveis. Foi assim com França no Europeu 2024, um dos melhores jogos da era Martínez, aconteceu agora com a Alemanha. Que mecanismo mental não permite que seja sempre assim é algo para o treinador espanhol analisar. Do ponto de vista conceptual, do rebentar de grilhetas, de sentimentos de inferioridade, esta vitória deveria ser um ponto de viragem. Assim seja. Segue-se a final, frente ao vencedor da meia-final entre França e Espanha. Mais uma oportunidade para Portugal jogar aquilo que tem capacidades para fazer: tão bem ou melhor do que os gigantes.