Na ilha da Madeira o 25 de abril só chegou em maio, e Fátima, fruto da idade, pouco se recorda. Sempre se assumiu como mulher livre e independente.
Nunca se encaixou em estereótipos, muito menos no papel da mulher perfeita do tempo em que nasceu. A mulher ideal ficava em casa, mantinha a ordem do lar, tomava conta da educação dos filhos, estava afastada da vida pública, não tinha acesso a muitas profissões e teria de ser submissa ao marido. Fátima não teve de ser nada disto.
Saiu da sua ilha aos 23 anos, viajou por todo o lado livremente, optou por não ser mãe, a profissão foi a que sonhou e o único lar que gere é a sua marca Fátima Lopes.
A estilista procurou sempre fazer o que queria e essa liberdade é dos valores que mais preza. Relembra que na década de 90 havia a tendência do grunge, da maquilhagem muito pálida e da extrema magreza dos modelos, mas Fátima nunca foi de tendências.
Hoje são mais de trinta anos de carreira e de certeza que a moda não é apenas o seu trabalho, é também a sua paixão, que não conseguia seguir se há 50 anos não tivéssemos lutado pela liberdade.
A década de 90 marcou a moda e marcou-a. Como é que isto tudo começou?
Com a Versus que foi a “concept store” que eu abri em 1990, era uma loja que vendia de tudo: peça de vários criadores inclusive. Trouxe ténis de salto alto de Jean Paul Gautier que foi uma loucura. Na altura não havia nada de nada em Portugal e as pessoas tinham sede de coisas diferentes e eu tinha o sonho da moda, tinha jeito para desenhar, e muita imaginação, mas sabia que não tinha técnica. Eu tinha formação em turismo, então tinha de ir perceber como se fazia, como é que os grandes faziam…
E começa então a ir lá para fora…
Sim, foi com essa consciência que decidi perceber in loco como é que as coisas funcionavam e comecei então por viajar, ir às feiras de moda em Milão, Londres, Paris. Eu ia comprar e ia à procura de tudo o que fosse diferente.
Mas ia já a saber o que queria? Ou ia para ser surpreendida?
Não, eu tinha um trabalho de pesquisa muito grande. Foram dois anos de viagens mensais. Eu ia aos comerciantes comprar e em simultâneo ia às feiras de moda ver o que havia à venda, não ia tanto para comprar, mas sobretudo para aprender.
E que coisas comprava?
Em Paris comprava roupa e Milão e Londres era mais sapatos e acessórios. Se bem que o tais ténis de salto alto vieram de Paris. Lembro-me de uma vez chegar a Camden Town [Londres] e haver uma bancada de joias com pratas, com lápis lazúli e ónix, era uma coisa diferente de tudo e eu comprei tudo e cheguei aqui e vendeu-se tudo numa semana. Havia muita sede de moda e tudo o que eu trazia, como era diferente e único, ia tudo.
"A democracia deu-me uma carreira, deu-me uma vida."
E como era a moda dos anos 90?
No início dessa década estava na berra Jean Paul Gautier e Vivienne Westwood, com estilos completamente diferentes eram a vanguarda da moda na altura. Eu, na altura, idolatrava os dois e curiosamente conheci o Jean Paul Gaultier há dias, que ele veio cá fazer um espetáculo e eu disse-lhe que no meu início de carreira ele era o meu ídolo. Era o meu e deve ter sido de muitos jovens na altura. Chamavam-lhe l’enfant terrible porque ele era realmente diferente de tudo e era isso que eu queria. Queria fazer o que tinha dentro da minha cabeça e precisei de dois anos para ter coragem de me atirar de cabeça para começar a remar contra a maré, porque na altura não era nada fácil.
Em que sentido?
Era tudo olhado de lado, tudo o que se fizesse de diferente era julgado e sobretudo as mulheres tinham que ser muito recatadas.
Que era o que a Fátima não era….
Não… (risos) eu costumo dizer que naquela altura eu tinha quem me odiasse e quem me amasse, dificilmente eu era indiferente. Hoje em dia acho que sou consensual com muita gente. Mas eu fazia aquilo que eu gostava e as pessoas achavam que eu fazia aquilo por chocar, que tudo aquilo era muito propositado, que eu tinha uma máquina de marketing por trás, eu não tinha nada! Eu era a miúda que veio da Madeira, habituada ao sol e à praia, e andar de calções curtos, mini saias e biquínis era normal, quase o ano inteiro. Mas pronto, acabei por ser uma lufada de ar fresco, porque era diferente do que havia.
Essas críticas, que ainda hoje podem estar na mente de algumas pessoas, acha que são resquícios de um tempo de uma ditadura e conservadorismo?
Ai sim, sem dúvida nenhuma. Felizmente, costumo dizer, eu sou fruto de um 25 de abril. Se não tivesse existido um 25 de abril, eu não existia. Aliás, nem sei o que me teria acontecido, porque imagino que, com as minhas ideias numa ditadura, teria sido presa! A marca Fátima Lopes nem tinha nascido, até porque eu não saberia ser de outra forma. Uma das palavras que eu gosto mais é liberdade, porque o poder fazer toda a vida exatamente aquilo que eu quis, não tem preço. A democracia deu-me uma carreira, deu-me uma vida. Graças a Deus que eu não sei o que é não viver em liberdade, porque quando se dá o 25 de abril eu tinha 9 anos…
E em criança nunca sentiu esse regime de ditadura?
Não. Sobretudo porque eu nasci na Madeira e não tenho noção de não viver em liberdade… mas ali era um bocadinho um “cantinho do céu”, estávamos um bocado isolados para o bem e para o mal.
E de certa forma, ter crescido na Madeira, acabou por influenciar a sua criação, os decotes, as rachas e ter o corpo mais ao descoberto…
Sim, tudo o que era aqui considerado excêntrico, revolucionário ou chocante, era simplesmente eu a ser eu. Eu cresci literalmente no Clube Naval, eu fazia praia de verão e de inverno era normal essa ideia de corpo exposto. E eu continuo a achar que o corpo não é para esconder, é para valorizar, mas sempre com consciência do que se deve mostrar ou não. Eu nunca vulgarizei o corpo. A sensualidade também vem daquilo que se quer valorizar no corpo, que pode não ser igual para pessoas diferentes. É o que nos fica bem, que não é igual para todas as pessoas.
E como é que uma criança num meio tão fechado, até mesmo Portugal estava muito isolado se inspirava nas suas criações com os vestidos das bonecas?
É uma boa pergunta, mas eu acho que sempre foi uma coisa que nasceu comigo. Eu não via revistas, porque não tínhamos, nem na televisão passavam desfiles de moda, na altura nem se sabia bem o que era moda. Portanto eu acho que não se explica, foi algo que nasceu mesmo comigo, esta paixão e gosto e depois claro que o trabalho fez tudo o resto.
Li algures que não gostava das roupas que a sua mãe comprava para vestir…
Não gostava, não (risos) Chorava e fazia birras que não vestia. Quando a minha irmã mais velha casou, eu tinha seis anos, e eu fiz birra que não usava o vestido que a minha mãe me tinha arranjado para levar ao casamento e exigi um combishort, um macacão de calções. A minha mãe, enquanto foi viva, dizia que aquela tinha sido das maiores vergonhas da vida dela, porque para a minha mãe eu fui a pessoa mais mal vestido do casamento, porque efetivamente estava contra o dresscode (risos)
Daí se calhar vem a “Miss Peneiras”?
(risos) Vem! Eu era a “miss peneiras”, a “miss palito” porque era muito magra; mas sim, eu era muito muito vaidosa, desde pequenina. Eu sempre fui muito vaidosa e também era muito atrevida. Eu era aquela miúda que perguntava o “porquê” de tudo, porque eu sempre tive isto de fazer o que eu queria, como eu queria, era terrível. Eu acho que se eu tivesse um filho como eu seria o inferno (risos) Eu não aceitava ordens e ainda hoje em dia não aceito ordens.
"Houve uma tentativa de condicionar a minha liberdade criativa, mas eu não permiti"
E em adolescente? Era revolucionária? Já que cresceu no rescaldo de todo um período revolucionário…
Não, revolucionária não era. Nunca precisei de ser, porque os meus pais também me davam muita liberdade…
A sua adolescência foi num período giro, os “loucos anos 80”…
Os anos 80 foram uma época muito divertida, em que a música era o máximo, em que eu saía todas as sextas-feiras e sábados e era tudo muito seguro, não era perigoso sair na Madeira. E eu sempre tive o meu grupo de amigos muito grande, encontrávamo-nos no Clube Naval, e íamos todos juntos. E eu adorava sair, e sempre fui uma pessoa muito bem-disposta e sempre fiz amigos muito facilmente. Adorava dançar, e hoje em dia continuo a adorar apesar de ser raro. É daquelas coisas que eu tenho pena de não fazer mais é dançar, porque sempre adorei.
E qual era o estilo da Fátima?
Lá está, era aquilo a que me chamaram de sexy, mal cá cheguei, mas na verdade, sempre foi o meu estilo. Vestia saias muito curtinhas e um top curtinho também; eram coisas muito femininas, sempre, sempre, sempre. E na altura estava na moda muitas pulseiras, brincos grandes e colares. Cores assim psicadélicas e o cabelo, tínhamos uma forma de pentear com laca para levantar a parte da frente e ter os cabelos muito montados. Agora tem graça olhar para trás. Mas era muito típico, da idade e da época!
"O meu nicho de mercado eram os jovens que queriam coisas que ninguém tinha"
E como é que no meio disto tudo, com 23 anos, decide sair da sua ilha e vir para o continente para começar moda? Algo que nem era a sua área profissional…
Há uma história engraçada de um rapaz – por acaso faleceu há pouco tempo - que foi fazer a tropa à Madeira e que eu conheci. Ele foi a primeira pessoa que me falou de uma coisa que havia cá, que era as “Manobras de Maio”, um evento que existia de moda, nos anos 80, antes do “Moda Lisboa”. E miúdos, como eu, que sonhavam com moda podiam participar. Muitos dos criadores que depois se lançaram começaram pelas “Manobras de Maio”. Então eu fiquei com aquilo na cabeça e vim para Lisboa para fazer parte as “Manobras de maio”. Curiosamente, nunca fiz. Mas aquilo foi o que eu precisava para acreditar que era possível e que havia coisas a acontecer.
É então em 1990 que abre a concept store Versus, como é que se dá o salto para o seu primeiro desfile como criadora, dois anos depois?
Na altura da loja, tinha também uma costureira que me fazia as coisas que eu desenhava para eu usar. E houve duas marcas, uma em Londres e outra em Paris, que me convidaram para fazer uma coleção, porque me tinham perguntado de onde eram aquelas roupas e eu dizia que tinham sido feitas por mim. Eu não tinha interesse em desenhar para marcas, tinha interesse em construir algo meu. Então, discretamente, sem dizer nada a ninguém, desenhei à volta de 20 peças, a costureira que trabalhava para mim fê-las, e eu pus à venda na loja e chamei-lhe de Versus. Não disse a ninguém que era desenhado por mim e vendeu-se tudo. E aí eu percebi que tinha mercado para aquilo. E começou assim em 92, em setembro, fiz o primeiro desfile no Convento do Beato. E a partir daí, nasceu a Fátima Lopes e eu já não tinha medo de dizer “fui eu que desenhei”. A Versus morreu nesse dia e nasceu a Fátima Lopes.
"Tudo isto era uma guerra com armas diferentes"
E as pessoas na década de 90 estavam já abertas à moda?
Já existiam algumas coisas. Já existia Ana Salazar, já existiam alguns criadores de moda, mas não havia desfiles de moda organizados por criadores. Ninguém tinha essa iniciativa, até porque era difícil. Imagine pagar para alugar espaço, pagar aos manequins, à equipa de organização, ninguém tinha dinheiro para isso. A verdade é que eu fiz isso tudo sem dinheiro, fui buscar um amigo e depois vinha o amigo do amigo e toda a gente achava graça. Eu acho que havia muita vontade de muita gente e havia, uma palavra que se usava muito, que era a “movida” de Lisboa, o tempo do “Frágil”. As pessoas vestiam-se super bem, e a rigor, para ir para o “Frágil” ou para ir para o Bairro Alto. Era uma loucura naquela altura. E o meu nicho de mercado eram essas pessoas, eram os jovens que queriam coisas que ninguém tinha.
Ainda nesta década: abre a sua loja em Paris, começa a desfilar na Moda Lisboa e Portugal Fashion, abre a sua agência de modelos…. E finalmente temos Paris?
Sim. No final dos anos 90 eu já aparecia no Fashion TV, o meu desfile da Moda Lisboa tinha sido transmitido e isso abriu-me portas. Também já tinha lá a minha loja. E houve um dia que recebi cá a visita de um francês que veio assistir o meu desfile da Moda Lisboa, e apresentou-se e disse que queria ser o meu assessor de imprensa e que eu devia começar a desfilar em Paris. E quando ele me diz que é possível, eu comecei a sonhar. A minha vida foi feita de sonhos e de lutar para conseguir. E pronto, em março de 1999 fiz o meu primeiro desfile em Paris, já lá vão 25 anos, e 43 desfiles consecutivos.
Foi a primeira portuguesa a desfilar na Semana da Moda em Paris…
Imagine! Uma portuguesa, pela primeira vez, começa a desfilar em Paris. Nunca tinha havido nenhum português na Fashion Week, toda a gente achava que era impossível. A ideia que havia de Portugal na altura era muito má. Era a senhora da limpeza, a porteira e o homem das obras…eu ouvi de tudo e as maiores barbaridades sobre os portugueses. Portanto, eles achavam bocadinho que eu era quase uma exceção de Portugal, até as coisas começarem a ser menos ignorantes e começarem a perceber que Portugal não era nada disso.
A propósito de revolução, o desfile do biquíni foi a sua criação mais revolucionária?
Sim, obviamente. Esse foi o meu terceiro desfile em Paris e eu tinha noção que estava a competir com os melhores do mundo. Como é que se compete com uma Dior, uma Chanel, uma Louis Vuitton, uma Yves Saint Laurent… uma portuguesinha com uma empresa pequenina, com pouco dinheiro para fazer desfiles? Eles gastavam mais em maquilhagem do que eu no desfile inteiro. Tudo isto era uma guerra com armas diferentes e por isso tinha que ser muito mais criativa, tinha que ser única, tinha que conseguir chamar a atenção. E então os meus assessores acharam que a originalidade estaria em eu desfilar no meu próprio desfile, porque nunca tinha acontecido! E eu na brincadeira digo “Só se fosse vestida de diamantes…”, convencida de que era impossível. E era verão, era uma coleção de verão, e o que é que nunca tinha sido feito? Um biquíni. E tínhamos um amigo americano com uma empresa de lapidação de diamantes na Bélgica e ele disse consider it done! Eu comecei a fazer o desenho, mas sem acreditar muito que ia acontecer. De repente começam a anunciar aos jornalistas que eu ia desfilar com um biquíni de diamantes, a própria organização da Semana de Moda ficou entusiasmadíssima e, por isso, não havia volta a dar! E foi mesmo uma revolução. Nas fashion weeks do mundo foi o primeiro biquíni de ouro e diamantes. Este boom foi mesmo importante para mim!
Alguma vez sentiu que a sua liberdade criativa foi de certa forma castrada?
Não, porque eu nunca permiti. E acho que está também em nós, cada um de nós, desde que vive num mundo livre e democrático, não permitir que isso aconteça. O que aconteceu, e isso sim, quando comecei na moda a indústria nunca acreditou nos criadores. Quando eu comecei na moda eu tive que abrir a minha própria fábrica, porque não houve nenhuma fábrica que aceitasse produzir os meus modelos. Diziam que eram diferentes e estranhos e talvez aí houve uma tentativa de condicionar a minha liberdade criativa, mas eu não permiti e abri a minha fábrica. Hoje em dia isso já não acontece, trabalho com imensa indústria, mas digo isto há mais de trinta anos: no dia em que houver sinergias entre criadores e industria, nós podemos ambicionar ser uma capital da moda internacional, mas só assim, porque até lá não somos. Somos um país visto de indústria, somos confecionadores das melhores marcas do mundo, mas com etiquetas estrangeiras. E isso é pena. Nós podíamos ser uma Itália ou uma França, porque tudo o que tem uma etiqueta made in Paris ou made in Italy é maravilhoso…
De quem é a culpa?
Eu acho que é dos industriais, porque sempre preferiram ser confecionadores para marcas estrangeiras, porque produzir para os outros em grandes quantidades é muito mais fácil do que estar a apostar numa marca que tem riscos. Essa capacidade de acreditar e arriscar não faz parte do ADN da indústria portuguesa. Basta olharmos para a Bélgica, que também é um país pequeno, acreditou nos seus criadores e têm criadores que são marcas internacionais. Ou a nossa vizinha, Espanha, que apostou na moda barata, a maior parte é uma moda que vive de cópias assumidamente, portanto é outra abordagem mas apostaram, e Portugal apostou em ser os confecionadores dos estrangeiros...
Fazemos 50 anos de democracia. Como é que acha que está a democracia no nosso país?
Eu acho que o problema não é a democracia, porque nós vivemos numa democracia graças a Deus. O problema está na mentalidade das pessoas que continuam a viver no passado e acho que está na altura das pessoas perceberem que temo todos direitos e que a palavra mais importante em democracia é mesmo o respeito. Respeito por todos, todos, todos.
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