
Nunca me imaginei a ter saudades do momento em que a primeira prioridade do governo da AD foi mudar um logótipo. Os sinais que o novo Governo está a dar atestam o fim do “não é não” de Luís Montenegro, que sempre foi mais retórico do que real, dado que as suas piscadelas de olho à extrema-direita, durante a legislatura anterior, foram mais que muitas. A AD-ega é a nova “geringonça”, nesta coligação informal que se estabelece entre a AD e o Chega. O problema é que é mais do que uma coligação. É a submissão de um governo e a rendição a uma agenda perigosa de um partido que vive da destruição de valores de solidariedade e humanismo.
Percebe-se a estratégia de Luís Montenegro. Quer puxar para si alguns dos temas da extrema-direita, numa tentativa de esvaziar a agenda daquele partido e, eventualmente, de cativar parte do eleitorado que fugiu da abstenção, do PSD e até do PS para lá (cabe aqui relembrar o estudo divulgado pelo Professor António Costa Pinto que contradiz a ideia de que houve uma deslocação em massa de voto do PCP ou do PS para o Chega: 21% dos novos eleitores do Chega vêm da abstenção e da AD e apenas 7% e 1% do PS e da CDU, respetivamente). Esta é a leitura benigna. A de que tudo se resume a um taticismo algo básico. A outra hipótese é a de que Luís Montenegro esteja a agir por convicção e que, verdadeiramente, acredite que o caminho para a governação é este. Estimo que a verdade esteja algures no meio, mas não duvido de que existe uma convicção enorme, num caminho de destruição de uma matriz democrática do PSD a que, felizmente, alguns resistem e que tem levado à indignação (e até afastamento) de alguns militantes que não reconhecem em Luís Montenegro a sucessão dos valores de Sá Carneiro.
A AD-ega não é uma boa ideia por várias razões.
Porque parte de uma deturpação de prioridades. Colocar a imigração como primeiro tópico de intervenção, ainda por cima nos termos em que tal foi feito, com propostas que ferem os princípios da nossa constituição, como bem notou o Professor Jorge Miranda, entre outros, é ceder a uma narrativa imposta pela extrema-direita. Falo de narrativa de forma consciente. O Chega tem sido altamente eficaz, através das suas estratégias recorrentes de difusão em massa de informação falsa, em criar um conjunto de perceções sobre imigração, pedidos de nacionalidade ou associações entre criminalidade e imigração. Há três ou quatro anos não havia este discurso público anti-imigração ou, mesmo quando não é de antagonismo, de manifestação de uma preocupação com o tema. E não existia porque, de facto, como os números mostram, não há um problema que justifique as medidas e o discurso adotado. Portugal não tem uma taxa de imigração preocupante, precisa da imigração para a sua sustentabilidade, não gasta mais do que recebe com os imigrantes, não tem uma criminalidade crescente nem associada à imigração, os pedidos de nacionalidade não são maioritariamente dos oriundos dos países que o Chega despreza (nem sequer de residentes!). O Chega foi tão eficaz que conseguiu contaminar o Governo (e até alguns autarcas do PS) com este discurso.
A natureza das medidas adotadas é completamente equivocada. O foco tem de ser no combate às máfias de exploração de pessoas e à melhoria das condições de vida para todos (imigrantes e não imigrantes) e não no combate às pessoas que nos procuram e que querem contribuir para o país como um todo e para a melhoria das suas vidas. Não se integra ou inclui hostilizando e dificultando a vida a quem chega a Portugal. São inqualificáveis algumas declarações na Assembleia da República de Leitão Amaro, que bem pode dizer-se humanista mas se trai no seu discurso. O regozijo do Chega com algumas das iniciativas aprovadas é o sinal da recompensa das suas falsidades propaladas.
O Governo está a cair numa armadilha perigosa. A agenda do Chega não tem nada a ver com preocupações com a imigração. São apenas racistas. Porque não leem os nomes de crianças de origem americana ou francesa. Porque não se pronunciam sobre nómadas digitais ou sobre americanos trumpistas ou brasileiros bolsonaristas que também nos procuram. São seletivos na discriminação e no ataque. E o Governo, ao se coligar, alimenta, espero que inconscientemente, este racismo militante.
As palavras importam. Os de pele escura e baixas qualificações são imigrantes. Os louros com estudos são “expats”. Na verdade, são todos pessoas, mas isso parece não importar para a AD-ega.
Acresce que o Governo não parece aperceber-se do perigo que traz para o país. A manchete do Diário de Notícias que revela que a criminalidade baixou 1,3% mas as notícias sobre crimes aumentaram 130% devia fazer o país parar. Governar a partir de perceções é errado porque é desonesto. Governar não é dizer o que as pessoas querem ouvir apenas porque isso dá votos. É, sobretudo, falar verdade, mesmo quando essa verdade é difícil até para quem governa. O mesmo PSD que inaugurou o seu “fact-check” não hesita em valorizar as ideias construídas pelos agentes da desinformação. A forma como a ex-Provedora de Justiça, atual Ministra da Administração Interna, desvalorizou a ex-Provedora de Justiça no relatório sobre a rusga no Martim Moniz revelou solidariedade com um Primeiro-Ministro que elogiou uma ação desproporcionada em nome das perceções. A forma como Carlos Moedas lamentou que a sua cidade esteja mais segura é um sinal preocupante do contágio do discurso radical. O perigo é óbvio. Basta lembrar a história de “Pedro e o lobo”. Quando for verdade, já ninguém acredita, porque fomentam que se acredite antes de ser verdade. A credibilidade das políticas passa pela sua adesão a problemas reais e não empolados ou imaginados. O PSD não parece entender que o original é sempre melhor do que a cópia. Ao investir na AD-ega, está a valorizar um ideário que – espero – não é o seu, alimentando um monstro que, um dia, o vai comer.
Luís Montenegro ainda está a tempo de emendar a mão. O Presidente da República ainda pode lembrar-se que é coautor da Constituição, cabendo-lhe proteger os valores fundamentais do nosso país. As bases do PSD podem mostrar que não é esta a sua matriz. O PS pode fazer a oposição séria de que o país precisa, mostrando o perigo do caminho que se iniciou com este Governo e apresentando propostas robustas e adequadas ao que é, de facto, real.
Diz-se, muitas vezes, que André Ventura está empenhado em transformar o Parlamento numa tasca. A isso contraponho que as tascas têm muito mais dignidade e valor do que o populismo de Ventura. Ainda que as adegas tenham melhor reputação junto do ideário popular, que esta AD-ega não continue o seu caminho e que Luís Montenegro arrepie caminho. A bem de todos nós.