
O mundo em que a Europa cresceu e se fez, moderadamente, grande está em crise. Muitos dos principais pressupostos em que o crescimento aconteceu estão em causa. O que há de novo é incerto, desconhecido ou contrário ao que define e interessa à União Europeia. E, no entanto, a realidade torna-a ainda mais necessária.
A Europa fez, primeiro, a paz, depois o progresso e a democratização do continente. E ainda conseguiu ajudar a promover o comércio internacional e a globalização, além de relações aproximadas com as vizinhanças. Quase tudo isso está em crise. Contra os interesses históricos desta Europa, a União Europeia terá de se adaptar a um mundo crescentemente hostil ao seu modelo cooperativo, globalista, liberal democrático e pacifista.
A construção europeia começou por ser feita para evitar a possibilidade de uma nova guerra no Continente entre as grandes potências regionais (que eram as potências globais que havia). Essa conquista está, por enquanto, segura. Ninguém vislumbra, num horizonte próximo, o risco de uma guerra entre membros da União Europeia. (Nem entre membros europeus da NATO, já agora). Embora o crescimento da AfD, na Alemanha, do partido de Le Pen, em França, e de movimentos de reaproximação à Rússia a Leste possam, daqui a uns anos, ser apresentados como sinais do que aí vinha. Pode ser. Mas por enquanto não é disso que se tem medo.
O que preocupa os europeus, pelos menos os seus líderes, por estes dias são outras mudanças, mais imediatas e potencialmente consequentes.
O risco que a Rússia representa para a Europa é hoje maior e mais solitário do que na maior parte do tempo da Guerra Fria. O risco de confronto entre blocos não está anunciado, mas o comportamento da Rússia na Ucrânia não permite que se dê por garantido que não haverá outros alvos. Por mais que o argumento do insucesso militar russo na Ucrânia possa ser invocado, a verdade é que os europeus, a começar por bálticos, nórdicos e alguns a leste, não se sentem seguros. Com razão. Primeira novidade, portanto. Um risco russo acrescido. A que se soma a incerteza quanto à disponibilidade americana para proteger a Europa. Tirando os franceses, que nunca confiaram muito na protecção militar americana, para os restantes europeus esta circunstância é nova.
Enquanto isso, a situação relativamente a Pequim não melhorou. Pelo contrário. Os europeus perceberam, sobretudo durante a pandemia, que dependiam demasiado do que era produzido na China. E descobriram, entretanto, que a sua transição energética é quase tão dependente da China quanto a Alemanha era do gás russo. Mas mais difícil de diversificar e estendendo-se a outras áreas. A pressão americana para que a Europa se afaste – preferencialmente aumentando a dependência dos Estados Unidos da América – é, e vais ser cada vez mais, maior. Os europeus sabem que devem depender menos. Os americanos querem que essa redução da dependência seja mais rápida e maior. Tanto para diminuir o mercado global da China como para aumentar o seu. Nada disto é completamente no interesse da Europa. Mas o contrário também não é. Por muito que por estes dias se fale, em Bruxelas e noutras capitais europeias, de olhar para a China de outra maneira, considerando o afastamento transatlântico, o facto é que a China não mudou. Só mudaram as circunstâncias.
O resto do mundo também está a mudar. Não são só os Estados Unidos da América que estão mais transacionais. As pequenas ou médias potências regionais também estão. Brasil, África do Sul, Turquia... estão a ver quem dá mais, ou pede menos. A Europa, não sendo uma potência como as outras, poderá ter de pensar como estas: mais transaccional, menos ingénua.
A Europa contribuiu e beneficiou muito do mundo do pós-Segunda Guerra mundial e pós-Guerra Fria. Este novo mundo, menos colaborativo, menos aberto, menos soft power e mais hard power, menos multilateral e mais multi-unilateral é-nos desfavorável. E agora?
Se a Europa soubesse o que queria, e quisesse, como deveria, o mais próximo possível com as últimas décadas, teria de ajudar a recuperar esse mundo: liberal, democrático, global, interdependente. A sua natureza é essa.
No mesmo dia em que o presidente dos Estados Unidos humilhou mais um chefe de Estado que teve de ir à Sala Oval, o presidente da África do Sul, os europeus recebiam a Cimeira UE – África em Bruxelas. O contraste entre a sessão na Casa Branca e o que os europeus podem ter, e espera-se que tenham, dito, é enorme. Não seremos a nova América. Menos ainda a anti-América. Mas podemos querer preencher o vazio. Alguém o fará. A Ucrânia é a nossa prova de fogo. O Mercosul também.