O acesso ao aborto é um direito periclitante. Não é novidade nenhuma numa sociedade em que se pensa na generalidade através da visão masculina. Ora, nesta semana, o assunto voltou a ser tema central das conversas do dia-a-dia, devido à campanha anti-escolha “Obrigado Mãe!”. Neste vídeo promocional, assim como lhe falta a vírgula de vocativo, também falta o bom senso quanto ao direito à autonomia corporal de todas as mulheres. A existência deste vídeo levanta várias problemáticas em camadas, sendo a mais visível a falta de compreensão sobre o que significa ser a favor da escolha.

Tu não és pró-vida, és anti-escolha

As pessoas contra o aborto dizem-se pró-vida quando na verdade são anti-escolha. Quem é a favor da legalização do aborto é a favor da opção, da escolha e, escolhendo fazer uma IVG, que esse procedimento seja feito de forma segura.

Sendo que, antes da legalização do aborto, a realização de abortos clandestinos era a terceira causa de morte das mulheres em Portugal, parece-me que, pelos factos, ser pró-escolha, sendo a favor da legalização do aborto, é a opção mais a favor da vida.

Além disso, é de realçar que quem é a favor da legalização do aborto não faria necessariamente uma Interrupção Voluntária da Gravidez caso engravidasse. Aliás, há uma conceção errada das mulheres que escolhem realizar uma IVG. Grande parte das pessoas que são contra a legalização do aborto, acham que engravidar é um descuido das raparigas inconsequentes. No entanto, há muitas mulheres que o fazem por questões económicas e de saúde. O espelho deste mito social levado ao pináculo do ridículo pode ser observado no comentário do influencer da manosfera portuguesa, João Barbosa, mais conhecido como Numeiro:

“Eu nem era totalmente anti-aborto, mas depois desta merda toda, acabei por perceber que vocês são só umas putas que querem levar na cona sem consequência [sic]. Aborto não é contraceptivo.”

Ora, para além de saber que, de forma nítida, o que esta pessoa quer é atenção, gostos, engajamento, importa referir que numa coisa ele a acertou: aborto não é contraceptivo, porque já aconteceu a concepção. Já agora, quem defende que a vida existe desde a concepção, comparando um embrião a um bebé, digo o que está a ser dito pela internet fora: para um embrião ser conservado, precisa de ser congelado, quando o mesmo cuidado não pode ser dado a um bebé. Assim sendo, um embrião não é equiparável a um bebé. Claro que, numa gravidez desejada, se podem projetar futuros em relação a um embrião, mas, mesmo assim, não é equiparável a um bebé.

Quanto ao aborto voluntário, trata-se de um ato obstétrico de Planeamento Familiar. Recordemos que o único método 100% infalível é a abstinência e, mesmo que uma pessoa a pratique, a gravidez não é impossível, visto que uma mulher pode estar em abstinência e engravidar devido a uma violação. Assim sendo, para além de todos os métodos contracetivos terem falhas, ainda temos a questão da violação.

Ora, para quem defende que se deveria proibir o aborto e apenas abrir exceções para casos particulares como as violações, lembre-se de como são, muitas vezes, difíceis de provar; como muitas vezes os violadores são familiares ou conhecidos da vítima, o que faz com que não haja uma queixa; como demasiadas vezes as vítimas são menores e, para além de serem coagidas a não contarem o que se passou, também não têm noção das questões ligadas à gravidez, como as semanas de gestação.

Além disso, fazer uma IVG não tem apenas a ver com não querer ser mãe — o que já seria razão suficiente —, mas também com o facto de não querer, ou não poder, estar grávida. Comecemos pelas razões económicas: o devido acompanhamento médico, as pausas no trabalho para quem não tem um contrato seguro, podem ser um impedimento na gravidez e no pós-parto; mais ainda, ter uma criança implica gastos a longo prazo, senão para a vida toda, especialmente se a criança nascer e, ou, crescer com necessidades especiais. Imaginem, ainda, o que é fazer isto tudo sem querer ser mãe. Para além das razões económicas, que levam muitas mulheres já mães de outros filhos a escolher uma IVG, há razões de saúde que impossibilitam prosseguir com uma gravidez. Há mulheres com gravidezes ectópicas — ocorrem quando um óvulo fecundado se implanta fora do útero, geralmente nas trompas de Falópio e são potencialmente fatais quando não realizado um aborto, aqui chamado de Interrupção Médica da Gravidez (IMG) — que precisam de realizar um aborto para sobreviver. Há mulheres que engravidam e descobrem depois que têm cancro, cujo tratamento não lhes permite continuar com a gravidez.

Quando se limita o acesso ao aborto, limita-se a toda a gente. Vejamos o que aconteceu nos EUA. O que começou por limitar o acesso à IVG com abertura de exceções, abriu o caminho a uma desumanização extrema nos cuidados de saúde das mulheres. Tomemos como exemplo o recente caso de Adriana Smith, grávida de oito semanas, no Estado da Georgia, que teve uma morte cerebral aos 30 anos, mas continua ligada às máquinas, há mais de 3 meses, a ser incubadora, já que a lei anti-aborto do Estado da Georgia proibe a interrupção da gravidez. Assim, sem o consentimento da mulher que ocupou aquele corpo, sem o consentimento da família — que considera o caso “um pesadelo pelo qual ninguém tem de passar” —, o corpo de Adriana continua ligado às máquinas, já com complicações reportadas no desenvolvimento do feto. Isto não é um milagre, é um filme de terror. As mulheres não são meras incubadoras, são pessoas e merecem dignidade. Que este caso sirva de exemplo quanto aos perigos na limitação da autonomia corporal das mulheres.

A culpa é sempre das mulheres

Além disso, é importante retirar o peso da contraceção do lado da mulher. O óvulo não se fecundou sozinho, mas quem carrega o peso emocional e físico da gravidez é a mulher. Recordemos os efeitos secundários possíveis da gravidez: enjoo, vómitos e azia; fadiga e alterações de humor — irritabilidade, ansiedade, tristeza; sensibilidade mamária, incluindo dor; aumento da frequência urinária e incontinência; dores de cabeça; prisão de ventre, flatulência e hemorróidas; dor de costas e lombares; alterações de pele, incluindo, manchas, acne, estrias e prurido; problemas de gengivas, já que 40% das grávidas desenvolve gengivite, o que causa sangramento e pode levar a recessão gengival (e até à perda de dentes); congestão nasal, sendo que 40% das grávidas apresenta sintomas de rinite; aumento do tamanho do pé, já que o arco do pé perde altura e rigidez, o que faz com que o pé se alongue; cãibras nas pernas e síndrome das pernas inquietas; excesso de produção de saliva; ondas de calor e aumento da produção de suor. Ora, contam-se mais de vinte grandes incómodos físicos e emocionais que vêm no pacote da gravidez que nos é vendido como um estado de graça. E é suposto uma mulher ser obrigada a passar por isto? Ser mãe não pode ser um castigo, tem de ser uma vontade. Ser mãe não é sobre dar à luz, é sobre criar uma criança, um adolescente e apoiar um adulto para toda a vida. Se tal, para quem o deseja muito, já é desafiador, imaginem fazê-lo obrigada. Não, obrigada.

Para além deste peso físico e emocional que a gravidez comporta, importa referir que quem é culpada se aborta é a mulher. Quem é olhada de lado se é mãe solteira, é a mulher. Quem é culpada por ter tido a criança de uma gravidez indesejada e depois não ter ligação emocional com a criança, é a mulher. Quem é olhada de lado se entrega o bebé para adoção é a mulher. Por isso, quem é “pró-vida”, na verdade, não só é anti-escolha como é só meramente pró-nascimento e não pró-vida. Onde estão as creches gratuitas fundadas por quem é “pró-vida”? Onde estão os fundos de incentivo monetário para o crescimento das crianças de quem é “pró-vida”? Onde está o incentivo de quem é “pró-vida” à educação sexual nas escolas para precaver violações e gravidezes indesejadas? Não se podem dizer pró-vida e não zelar por ela. Se só zelam pelo nascimento, não querendo saber do bem-estar da grávida ou do crescimento da criança, o seu raciocínio tem por base uma culpabilidade da mulher, vinda de valores morais retrógrados e bíblicos. Já vivemos no tempo de depois de Cristo há mais de 2000 anos, por isso, se calhar, só se calhar, já estaria na altura de uma atualização de software.

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Sobre ver o tema do aborto pondo o peso do lado de quem ejacula — já que a fertilidade dos homens cis é tremendamente maior que a das mulheres — recomendo a leitura do livro “Ejacula com Responsabilidade”, de Gabrielle Blair.

Aconselho, ainda, que se faça queixa do que disse o influenciador Numeiro, lendo Paula Cosme Pinto e seguindo os passos apontados por Francisca De Magalhães Barros. Não é preciso dar atenção ao discurso misógino, mas é preciso fazer-se queixa.