Maria Anna, ou Nannerl, como era carinhosamente tratada, nasceu em Salzburg em 1751. Começou a estudar música muito cedo sob a orientação rigorosa do seu pai, Leopold. Tal como o irmão mais novo – Wolfgang Amadeus Mozart – Nannerl era uma criança prodígio. Hoje, apenas o gigante génio de Mozart é celebrado. Só o facto de a sua história e influência – por séculos silenciada e remetida a uma breve nota de rodapé, com sorte – ter conseguido resistir até aos dias de hoje, é um forte símbolo do que foi e do que poderia ter sido.

Aos 7 anos, ela e o irmão iniciaram grandes digressões, onde ambos impressionaram audiências reais e aristocráticas. Aos 11, durante as tournées, e apesar do seu papel secundário, era reconhecida como uma das mais brilhantes pianistas da Europa. Naquela altura, viajar e conhecer todas as cortes importantes da Europa era um raro privilégio e as duras viagens recompensavam pelo que revelavam do mundo. Como Mozart confessou ao pai: “Garanto-lhe que sem viajar (pelo menos as pessoas ligadas às artes e às ciências) se fica uma pobre criatura! (…) uma pessoa de talento medíocre será sempre medíocre, quer viaje quer não – mas uma pessoa de talento superior (…) torna-se medíocre se ficar no mesmo sítio.”

Ofereceram-lhe o mundo para, bruscamente, o seu pai decretar ter de ficar “sempre no mesmo sítio”. Aos 18 anos, foi renegada à sua condição de mulher. Nunca mais viveria uma época tão interessante. Nannerl, outrora aclamada nos salões europeus, viu o seu talento confinado ao tamanho da sua casa.

A sua educação musical foi muito abrangente: “Nannerl acompanha como qualquer maestro” – escreveu Leopold em 1778 a Wolfgang. Dominava as partituras, improvisava, reduzia para piano peças orquestrais complexas, capacidade que exigia um profundo conhecimento, similar à de um maestro ou compositor. Era perfeita tecnicamente, muito expressiva e de gosto requintadíssimo.

Ninguém sabia isto melhor do que Mozart, que compôs para ela. E, quando se apercebeu da qualidade das suas composições, incentivou-a a prosseguir. Entre os dois irmãos, houve inicialmente uma colaboração musical profunda, falavam a mesma linguagem. Como se depreende das cartas trocadas entre ambos, ela influenciou os primeiros anos criativos do irmão, sendo conselheira e crítica. Com o tempo, e depois da morte do pai, com os casamentos, distanciamento físico e sobrecarga de trabalho, as cartas foram-se espaçando, até se silenciarem, causado em parte pelo próprio Mozart.

Apesar da educação progressista de Leopold, o “pedagogizar” dos iluministas tinha um lado sombrio: era privilégio masculino. A educação feminina mais ambiciosa incluía piano, boas maneiras e conversação – para o deleite dos salões. Mulheres consideradas demasiado cultas eram vistas como “uma perversão da natureza”. Educação progressista, mas nem tanto. Nannerl aprendeu a ler e tinha noções de inglês e francês. Só na música ultrapassou largamente as normas. O objetivo era óbvio, ganhar dinheiro como professora capaz. O irmão, para além de aprender várias línguas, teve aulas de teclado, violino, composição, contraponto, etc., coisas que um maestro precisava dominar. Apesar de excelente pedagogo, Leopold estimulou muito mais fortemente o filho do que a filha.

Nannerl foi uma professora muito respeitada. Tornou-se baronesa – por imposição. Educou 8 filhos e enteados, e sobrinhos, cuidou dos pais, casa e marido. Na velhice tentou incansavelmente recuperar os manuscritos do irmão. Penso poder dizer que mesmo sem ter deixado legado físico, a sua vida foi uma grande obra.

Doutorada em Educação Artística