Não é o programa que importa, são os protagonistas das pastas que ficaram e os que deixaram de ser ministros (porque deixaram?; e queriam sair?; foi trica ou truque?). Não contam os objetivos das políticas — a sua quantificação, a planificação de etapas, a medição de metas e efeitos, a responsabilização e a responsabilidade —, o que se discute é a forma dos ministérios e o que vale mesmo é alimentar polémicas que queimam em lume brando. É como ler um livro e nem chegar a saber a história porque se ficou a olhar para o corte de papel no dedo, porque se ficou absorvido pelo tom da tinta usada na impressão, no boneco escolhido para a capa, na espessura da publicação, na pose do autor na foto da badana.
Pouco importa o trabalho, o imenso que é necessário fazer para tirar Portugal da subcave em que ficou esquecido e ultrapassado, em dependência crónica de financiamentos e boa vontade alheia. A iniciativa é agrilhoada à trituradora legislativa e fiscal, a ambição e o lucro são pecados capitais gravados na pedra de uma ideologia que ainda berra mas cada vez menos eco tem na rua.
Portugal não foi sempre assim. Tempos houve em que o mérito tinha mais tempo de antena do que o escândalo, e os bons princípios e exemplos eram espalhados em lugar da lama que há um par de décadas atingiu a ventoinha, e na qual parecemos cada vez mais soterrados. Não é que tenhamos desaprendido de fazer e de fazer bem, mas muitos (demasiados) habituaram-se a ficar à espera do que lhes fora prometido, mesmo que a promessa corresponda a miséria. Porque foram sendo encurralados nessa crença de que há quem saiba melhor do que eles o que devem querer e saber e fazer — é tão mais fácil controlar uma multidão mansa do que um povo com vontade e ambição, que não admite que as suas capacidades sejam desperdiçadas...
E a exigência, claro, foi-se com o bebé, a água do banho e a própria banheira. Ficaram as paredes grossas das estruturas que se querem públicas, perdendo-se a noção de que já pouco protegem, antes impedem que se veja o mundo.
De que serve o Estado social, se o que devia providenciar não chega em tempo útil, se quem devia proteger fica mais vulnerável porque o foco está disperso por uma miríade de falsas prioridades? Se em vez de estar concentrado em servir se perdeu há muito no rolo compressor de tarefas inúteis ou redundantes?
De que serve reduzir taxas de IRC e refazer tabelas de IRS, se essas são um mero furúnculo no mostrengo fiscal que enfrentamos todos os dias (derramas, sobretaxas, IMI, AIMI, contribuição audiovisual, IVA....), a burocracia administrativa faz arrancar cabelos ao mais paciente dos homens e as regras mudam mais do que as marés? Se cada investimento e cada inovação têm uma espada permanentemente sobre a cabeça?
De que serve apregoar-se que se quer pôr o país no mapa das maiores economias, pugnar pelo crescimento dos salários, das empresas e da produtividade, se todos os factos e todas as regras apenas beneficiam quem se mantenha na mediocridade? Se todos os sinais visíveis no caminho de quem se predispõe a acelerar a fundo são de perigo?
De que serve a justiça, se é possível ser arguido por mais de um ano e se pode ficar uma década à espera de um julgamento? Se não pagar uma dívida traz mais problemas e despesa a quem não a recebeu do que a quem não cumpriu; e um simples processo de despejo pode levar uma geração a resolver?
De que serve a educação pública, se os miúdos continuam a levar com as pilhas de matéria coligida nos anos 70 e ordem para decorar, em lugar de lhes estimularmos o pensamento crítico, a criatividade, a autonomia e a capacidade de trabalhar em equipa? Se os professores passaram a ser tarefeiros, mal pagos, desrespeitados e afogados em burocracia? Se não explicamos às crianças como funciona a democracia, a importância das instituições e da participação cívica, nem lhes ensinamos finanças pessoais, mas gastamos horas (de currículo e de debate público) a enterrar a ciência sob a "identidade de género"?
De que serve um SNS que não tem condições de dar resposta a quem o procura e falha tanto a quem se refugia nos seguros de saúde quanto a quem não tem alternativa senão esperar a sua vez, sabendo que ela pode vir depois da morte? Se ninguém quer debater com seriedade a reestruturação profunda que já chegará bem atrasada a um sistema que perdeu a sua maior virtude: ter sido construído à imagem da sociedade que pretendia servir? De que serve um SNS anacrónico e desajustado em toda a linha das necessidades dos que devia servir e da mais básica ambição dos profissionais (condições de trabalho, condições de vida) a quem só se pede paciência e sacrifício?
Não foi só o longo deserto que atravessámos que precipitou para a fuga muito do nosso talento. Foi sobretudo a falta de perspetivas de inversão de rumo, a certeza da falta de vontade de renovar o que está podre, pelos mesmos que produziam inflamados discursos sobre o que viria a seguir... sempre a seguir...
Portugal já não está apenas a envelhecer, está a secar. E sem uma verdadeira reforma do Estado, está condenado a morrer ou ficar nas catacumbas da memória como um país que um dia foi e nunca mais soube ser. É urgente reformar o Estado, sim, e por isso um Ministério focado nessa missão é um excelente sinal. Mas não passará disso, de um sinal de boa vontade, se não houver empenho e coragem em levar por diante o debate sério, envolvendo a sociedade, mas sabendo quando chega o tempo de decidir. Sem distrações e sem discussões estéreis e infantis. Sem desfoque ideológico ou anacronismos.
Derrubar paredes não é fácil, sobretudo não é pacífico e conciliador. Gera atrito, mal-estar, reações alérgicas, desinstala e inquieta quem se habituou ao conforto, ao encosto. Mas anos de imobilismo foram mil vezes mais danosos, deixaram-nos ligados às máquinas. A mudança já tarda. Que venha agora, e depressa, como se pede no Manifesto: Reformar o Estado: Já Não É Cedo. E talvez ainda chegue a tempo de fazer voltar alguns dos que já aqui não tinham esperança, devolvendo-lhes um futuro. Devolvendo-nos futuro.
Reformar o Estado é o primeiro passo para reformar o país.
Diretora editorial