Num país que tantas vezes se orgulha da sua resiliência, dos avanços nos indicadores macroeconómicos e da recuperação pós-crise, o mais recente estudo Balanço Social 2024 obriga-nos a parar e a olhar de frente para uma verdade desconfortável: há em Portugal um fosso estrutural que separa quem tem daquilo que muitos não conseguem sequer imaginar ter.

Em 2023, 20,1% da população vivia em risco de pobreza ou exclusão social. São mais de dois milhões de pessoas. O número até parece técnico, mas representa vidas: trabalhadores que não ganham o suficiente, idosos que escolhem entre pagar a luz ou os medicamentos, famílias que não conseguem aquecer as casas no inverno. Segundo o relatório coordenado por Susana Peralta e a equipa da Nova SBE, mesmo entre quem tem emprego, 9,2% está abaixo do limiar de pobreza. Trabalhar em Portugal, para muitos, não chega para viver com dignidade.

É aqui que a empatia deve sobrepor-se ao ruído ideológico. Porque esta não é uma questão de esforço individual. É estrutural.

Portugal apresenta um dos mais altos níveis de pobreza laboral da Europa Ocidental. De acordo com dados da Eurostat (2023), a média europeia de pobreza entre trabalhadores é de 8,5%. Estamos acima disso. E quando olhamos para os trabalhadores com contratos temporários, o retrato é ainda mais gritante: em 2023, a taxa de pobreza entre esses trabalhadores foi de 18,2%. No relatório, destaca-se o setor do turismo e restauração com 22,8% de pobreza laboral — precisamente um dos setores mais celebrados pela retoma económica.

Comparando com a Alemanha, onde a taxa de pobreza laboral ronda os 6%, ou com a França (7,3%), percebemos que o problema português é mais profundo do que salários baixos: trata-se de precariedade, de contratos frágeis, de ausência de proteção real.

A narrativa do “crescimento económico” não é mentira. Mas é uma meia-verdade. O PIB cresceu, o desemprego desceu, e os salários subiram ligeiramente. Contudo, como sublinha o relatório, mais de 10% da população vive em pobreza extrema, com menos de 50% do rendimento mediano nacional. E 29% está em situação de vulnerabilidade económica. São pessoas que, perante um imprevisto, caem sem rede.

Em Espanha, país com uma estrutura social e económica semelhante, a pobreza extrema atinge cerca de 8,1% da população (INE, 2023). Em Portugal, é 10,4%. Em Itália, 7,5%. Isto deveria fazer soar todos os alarmes.

A pobreza entre os idosos é outro dado que devia incomodar profundamente: 21,1% da população com mais de 65 anos vive abaixo do limiar da pobreza. Um salto de 4 pontos percentuais num ano. É a maior subida registada entre todos os grupos etários. Depois de uma vida de trabalho e contribuição para o Estado, o que recebem é uma pensão média inferior a 600€ (dados da Segurança Social, 2023).

Na Suécia ou na Holanda, o risco de pobreza na terceira idade é inferior a 10%. A diferença? Lá, as reformas são ajustadas ao custo de vida. Em Portugal, continuam amarradas a critérios técnicos que ignoram o impacto real da inflação, das rendas, das despesas de saúde.

O relatório é claro ao ir além da pobreza monetária. Há famílias sem aquecimento, sem carro, sem dinheiro para uma refeição digna com carne ou peixe de dois em dois dias. Em 2024, 11% das famílias viviam em privação material e social; entre os pobres, esse número sobe para 34,7%. É a pobreza que se vê na pele, na casa fria, no prato vazio.

E aqui, a comparação com países como a Eslovénia ou a Finlândia, onde a taxa de privação material e social severa ronda os 2%, mostra-nos que isto não é inevitável, é político. É o reflexo de prioridades, ou da ausência delas.

O dado mais desconcertante talvez seja este: seriam necessários cerca de 3,5 mil milhões de euros (menos de 2% do PIB) para tirar todas as pessoas da condição de pobreza monetária. Não para enriquecer ninguém, mas para garantir o mínimo de dignidade. Um país que investe 3% do PIB em infraestruturas pode, se quiser, investir 2% em justiça social.

A escolha é nossa. Este relatório não é uma condenação. É um espelho. Portugal pode continuar a maquilhar os números, a celebrar percentagens de crescimento e rankings internacionais. Ou pode escolher encarar a pobreza como o que ela é: uma urgência nacional.
A pobreza não é um destino. Mas se a tratarmos como inevitável, tornamo-nos cúmplices da sua persistência.

Fontes: Portugal, Balanço Social 2024 – Nova SBE 
Eurostat – Living conditions in Europe - poverty and social exclusion: Eurostat Statistics Explained

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