
No mesmo ano em que o banco Lehman Brothers colapsou, desencadeando uma crise económica mundial, surgiu um documento intitulado Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System, assinado por Satoshi Nakamoto, uma figura enigmática cuja identidade permanece desconhecida. Esse manifesto apresentou uma ideia radical: uma moeda digital descentralizada, independente de governos e bancos centrais.
Lançada em 2009, a Bitcoin foi transacionada pela primeira vez em 2010, quando um programador pagou 10.000 bitcoins por duas pizzas — uma quantia que, aos dias de hoje, faria com que cada fatia custasse mais de 447 milhões de euros. Embora aparentemente anedótica, esta transação demonstrou o potencial da criptomoeda como meio de pagamento e marcou o início de uma nova era económica.
Apesar da volatilidade e de episódios mediáticos de perda de valor, como o colapso da empresa FTX ou a recente desvalorização da criptomoeda $LIBRA, associada a Javier Milei, o mercado global de criptomoedas está atualmente avaliado em cerca de três triliões de euros. Muitos continuam a encarar as criptomoedas como um caminho para o Eldorado digital, e figuras como Donald Trump têm manifestado o seu apoio, prometendo "transformar os Estados Unidos na capital mundial das criptomoedas".
No entanto, para além do investimento especulativo, as criptomoedas têm também vindo a abrir caminho para novas formas de filantropia, beneficiando da rapidez, baixos custos e abrangência global das transações. Em 2017, um doador anónimo criou o Pineapple Fund, comprometendo-se a doar 55 milhões de dólares em Bitcoin a diversas organizações sem fins lucrativos. Na altura, escreveu: "Os meus objetivos, metas e motivações na vida não têm nada que ver com [...] ser [...] mega-rico. Então, vou fazer outra coisa: doar a maior parte das minhas bitcoins para causas de caridade."
Nos Estados Unidos, onde o enquadramento regulatório é mais favorável às criptomoedas, algumas das maiores instituições sem fins lucrativos, como a Unicef, os Médicos Sem Fronteiras, a American Cancer Society e a Cruz Vermelha Americana, já aceitam doações digitais, tendo sido doados, apenas no ano 2023 cerca de um bilião de dólares em criptomoedas para causas filantrópicas nos EUA.
Na Europa, a resposta tem sido mais cautelosa. Os reguladores têm trabalhado na criação de um quadro normativo robusto, como o regulamento MiCA (Markets in Crypto-Assets Regulation), que visa aumentar a segurança e transparência das transações digitais. Ainda assim, algumas organizações de referência, como a Oxfam, o Save the Children e a Cruz Vermelha italiana e espanhola, já aderiram a esta nova realidade e aceitam doações em criptomoedas.
Como será o futuro? Teremos de esperar para confirmar a consolidação das criptomoedas como instrumento transformador da economia e da sociedade, mas a filantropia digital continua a crescer, através de um novo perfil de filantropo e aproveitando o potencial da tecnologia blockchain.
Neste novo paradigma, a tecnologia poderá não apenas redefinir a forma como vemos e lidamos com o dinheiro, mas também a forma como criamos impacto social.
Secretário-geral do Centro Português de Fundações