A pergunta mais decisiva para as eleições que se avizinham é esta: até que ponto os factos, a discussão e a propaganda em torno do primeiro-ministro influenciarão o sentido de voto dos portugueses? O problema é que não é fácil medir o sentimento dos portugueses relativamente ao que se passou nas últimas três semanas. Por um lado, suspeitas sobre a conduta do primeiro-ministro em assuntos que envolvem dinheiros seriam sempre dedos acusatórios que eleitoralmente se reflectiriam na queda do apoio ao partido do governo. Por outro lado, não é óbvio que suspeitas vagas e sem conteúdo criminal produzam grandes ondas de protesto – e, ao não fazê-lo, podem até gerar uma resposta de aversão pelos partidos de oposição que criaram a crise de desconfiança. E de uma desconfiança ainda pouco consubstanciada em delitos graves num contexto nacional em que as coisas lá iriam correndo toleravelmente, com a excepção de uma ou duas áreas de governação, sem grandes atribulações, e, num caso ou noutro, corrigindo calamidades do governo anterior, como na pasta da imigração. Há, portanto, uma indeterminação que só o tempo se encarregará de desfazer.
No entanto, do ponto de vista das grandes orientações estratégicas, o partido do governo suscita outras indeterminações que se devem exclusivamente às suas escolhas e omissões, ambas radicadas em problemas mais profundos. A sabedoria convencional de longa data no PPD, mais exactamente desde o momento em que deixou de ser o maior partido nacional e passou esse testemunho para as mãos do PS, no final dos anos 90, resume-se a duas ou três teses básicas.
Primeiro, veio a tese de que o país era "estruturalmente esquerdista". Uma tão rica intuição sociológica condicionou tudo o resto. Desde a identidade ideológica dos militantes e eleitores que devia ser escondida para não envergonhar ninguém, até às propostas de políticas públicas que não se deviam desviar muito das da esquerda para não causar derrotas eleitorais.
Segundo, o PPD era PSD. Isto é, o partido popular fundado após o 25 de abril que acolheu todo o tipo de pessoas e de aspirações que podiam ser descritas de muitos modos, mas não certamente como sendo "socialistas" ou "esquerdistas", era na verdade um partido de seita, ideologicamente identificado com uma linha estreita que se designou, para confusão de toda a gente, "social-democrata". Nos seus piores momentos, o PPD resumiu-se a esta cassete que repetia obsessivamente que era "social-democrata" como sinónimo de "socialista", usando o pretexto para repudiar o seu património, e, mais importante do que isso, para desdenhar elementos políticos essenciais a qualquer democracia civilizada. Era o "liberalismo" que era um horror ou o "conservadorismo" que era uma barbárie. Pouco importava que não havia "pluralismo" numa democracia ocidental sem liberalismo ou sem conservadorismo, e que o único ponto de abrigo desse liberalismo e desse conservadorismo no sistema partidário que saiu do 25 de Abril era precisamente o PPD/PSD e só o PPD/PSD. A demonstração de que o próprio PPD compreendia essa vocação e essa função – o seu momento de tomada de consciência de si, por assim dizer – foi feita no próprio programa do partido, na sua declaração de princípios.
Em vez de abraçar a vocação e a função do seu partido no sistema português como o lugar da alternativa ao PS, ou a uma grande coligação das esquerdas liderada pelo PS, lideranças várias ajudaram ao desmoronamento convertendo-o numa seita ideológica falsa, que nem eles conseguiam caracterizar. Um partido pequeno, incapaz de representar fosse o que fosse, complexado até com a sua sombra, aterrorizado com a crítica ideológica da esquerda. Com Rui Rio, esta estratégia atingiu o seu ponto mais caricato. O resultado foi imediato. E ninguém no PSD se pode confessar surpreendido com a velocidade do desastre na constituição do IL, do Chega e da quase defunta Aliança. Porque o aviso chegou cedo e foi claro. A amputação foi consciente e desejada, numa espécie de fascínio por uma eutanásia partidária.
Depois de ter desperdiçado uma oportunidade única durante o período em que Luís Montenegro foi líder da oposição, o PPD chegou ao governo com a mais exígua das maiorias e sem qualquer resposta para o desafio da reconstituição de um grande partido popular, limitando-se a gerir à vista uma situação de precariedade política radical. Apesar de o país por várias razões ter virado acentuadamente à direita, deixando a esquerda e a extrema-esquerda numa crise que vai muito além da fraqueza das suas respectivas lideranças, o PPD não liderou este movimento. Pelo contrário, foi arrastado por ele, na maior parte das ocasiões com incredulidade e estupefação. Dada o clima de hostilidade pura com o Chega, e a escassíssima confiança que o Chega fez por merecer, consequência da debilidade dos quadros desse partido e das limitações do pensamento estratégico do seu líder, a situação de fragmentação à direita acentuou-se. Por conseguinte, entendimentos políticos com o Chega tornaram-se, por boas e por más razões, impossíveis a um prazo cujo fim ninguém consegue enxergar.
Em simultâneo, com a formação da Geringonça em 2015 e a subsequente estratégia de aliciamento permanente dos partidos da extrema-esquerda pelo PS, os suspiros de uma parte do PPD, presente desde o seu nascimento e que ainda sobrevive, por um Bloco Central mais ou menos formal, converteram-se em soluços de desespero. No actual contexto, uma escolha do PPD por uma aliança ou entendimento com o PS representariam o fim do PPD como grande partido nacional.
Mas, se o Chega e o PS já fizeram as suas opções estratégicas – o primeiro quer formar governo com o PPD e colocar o seu líder como vice-primeiro-ministro, aguardando pelo momento de passar à dianteira; o segundo, liderar geringonças esquerdistas até ao fim dos tempos –, o PPD não fez as suas. Não podendo coligar-se nem com uns nem com outros, e demasiado enfraquecido em Março de 2025 para aspirar a uma maioria absoluta, que solução é que o PPD representa para o sistema político português? O sucesso governamental podia ter sido uma aproximação, mas a desastrosa e ridiculamente gerida crise política dos últimos dias deitou essa vantagem a perder.
Rejeitando a abrangência de um grande partido popular, ainda complexado na afirmação de uma política não-esquerdista, apesar de o país lhe ter dado uma autorização explícita para isso, o PPD hesita. O tempo, porém, não está para hesitações e agora cresce a urgência de mostrar que o PPD é o pilar central da estabilidade do sistema, e não o seu maior foco de instabilidade.
Escreve no SAPO quinzenalmente à terça-feira//Miguel Morgado escreve com o antigo acordo ortográfico