A época festiva que se aproxima fez-me recordar um dos episódios descritos na Bíblia e associá-lo aos vários pecados mortais que perseguem a solução aeroportuária de Alcochete.
À cabeça, a mentira. Fazer acreditar que um concessionário privado – ou seja, uma entidade que nunca será proprietária – vai construir um aeroporto de 9 (?) mil milhões de euros e que isto não nos vai custar nada é algo que nem mesmo quem acredita no Pai Natal deveria sonhar. Basta pensar que todos os acessos – estradas, pontes, ferrovia, que esta obra exigirá – serão sempre pagos à parte e por nós, contribuintes. E que apenas serão construídos por causa desta solução aeroportuária.
Vem a seguir o vício. O trabalho da Comissão Técnica e a sua própria criação estavam viciados desde a sua incipiência. A Comissão foi uma criação política do “centrão” que resultou de o governo anterior ter decidido deitar abaixo um concurso público internacional ganho por um consórcio luso-espanhol e que faria, certamente, uma avaliação aeroportuária profissional, objetiva, atualizada e integrada para a região de Lisboa. E isso, só por si, era uma ameaça para o projeto faraónico que se queria aprovar. Nada, nem nenhum estudo desta Comissão política foi sujeito a concurso. Nem os seus pressupostos e nem os seus resultados altamente viciados foram submetidos a publicação científica em revista de renome – porque, certamente, teriam de ser corrigidos ou racionalmente justificados, sob pena de serem reprovados.
Depois, a preguiça. A preguiça de pensar e imaginar uma solução para a mobilidade (aérea e não só) do futuro. Este aeroporto não consiste em pagar uma promessa do passado, um plano que começou na década de sessenta do século passado, quando Portugal ainda era uma ditadura e tinha um império colonial. Um aeroporto que abrirá portas daqui a dez anos e cuja rentabilidade e existência estão pensadas para os 80 anos seguintes tem de servir o futuro, sob pena de se transformar em mais um elefante branco.
Seguimos com a avareza, associada à gula dos contratos públicos de construção chorudos para as próximas décadas e à agenda dos investidores hoteleiros e do turismo de crescerem sem quaisquer restrições de volume. Só um aeroporto com capacidade para 100 milhões de passageiros poderá acompanhar Lisboa, a terceira cidade europeia com mais hotéis em construção, sendo as duas outras Londres (seis aeroportos) e Istambul (dois, um dos quais um mega-aeroporto). Para eles, o que falta em Lisboa não é habitação, nem equilíbrio e conciliação de interesses… o que falta mesmo é um aeroporto!
Ainda a inveja, dos espanhóis, aquela que nos persegue há séculos e a única que verdadeiramente alimenta o nosso orgulho. Queremos ter um aeroporto como Madrid, de preferência maior ainda. Para quê?! Depois, logo se vê.
E por fim, o ecocídio – em muitos países já considerado um crime. Este é o pecado mais duro que infligimos às gerações futuras e que vai desde construir um aeroporto por cima do maior lençol de água doce da Península à dívida e compromissos concessionários praticamente centenários. E, sobretudo, num momento em que a tecnologia é desafiada neste setor a reduzir o volume total de emissões e que os próprios Estados assinam compromissos internacionais, o que é este novo aeroporto senão todo o contrário daquilo que precisamos fazer para o futuro?
Voltando ao início: as mentiras que nos contam sobre o aeroporto de Alcochete e que, pela sua dimensão, podem facilmente estragar a vida das gerações futuras, apenas poderão ser paradas com a via dolorosa de autorizações e de revisões que se avizinham e nas quais a Comissão Europeia poderá desempenhar um papel fundamental. E porque é Natal, apenas podemos rezar que, nesse escrutínio europeu, António não dê outra vez à Costa.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo