Em Santarém, há culto improvável e improvavelmente sério: os Devotos de Neno, uma religião que nasceu de uma piada adolescente e se transformou num fenómeno com ramificações culturais, humorísticas e até desportivas. No centro desta narrativa está Sérgio Fernandes — guionista, fundador de um clube de futsal e, no seio da fé nenoísta, conhecido como Pastor Serjão.

A história começou nos anos 90, quando Sérgio, então com 12 anos, viu o guarda-redes Neno brilhar num célebre Sporting-Benfica. “Este gajo é Deus”, disse, meio a brincar, meio a sério. No dia seguinte, levou a revelação aos colegas de escola: “É só para avisar: o Neno é Deus”. A frase ficou, ganhou adeptos na escola e, com o tempo, a ideia germinou, misturando-se com rituais inventados, expressões religiosas adaptadas ao futebol e uma boa dose de parvoíce assumida. “Começámos a dizer coisas como ‘Graças a Neno’ ou ‘Que o Neno nos guie’”, relembra Sérgio Ferndandes. Em 1998, uma lesão de Neno num treino — onde ficou preso na rede da baliza, mas saiu ileso — foi interpretada como milagre. Era o sinal que faltava. “Precisávamos de uma manifestação divina para legitimar a fé. E ele sobreviveu àquilo. Estava escrito.”

A brincadeira sedimentou-se num universo religioso alternativo com celebrações próprias, cânticos litúrgicos e até uma consoada especial: o NeNatal, celebrado todos os anos a 27 de janeiro. O culto depressa cresceu. “Começámos com 12 pessoas, os apóstolos. Mas em algumas edições já tivemos mais de uma centena”, recorda Sérgio. O fenómeno ganhou tal dimensão que chegou à imprensa nacional e até à televisão. O próprio Neno, em vida, não só tomou conhecimento do grupo como desenvolveu uma amizade com os devotos. Sérgio recorda o momento em que o viu pela primeira vez, numa feira desportiva em Lisboa: “Expliquei-lhe tudo, rapidamente. Ele estava atrasado, deu-me o número de telefone. Pensei que fosse falso, mas era mesmo dele.”

A partir daí, criou-se uma relação próxima. “Falávamos no dia de Natal, trocávamos mensagens. Ele chegou a vir a Santarém ao nosso NeNatal e nós fomos ter com ele à Penha, em Guimarães, no sítio onde se casou. Chamámos a isso ‘A NenÚltima Ceia’”, relembra o pastor. Neno, segundo Sérgio, foi o “Deus ideal”: generoso, humano, próximo. “Era uma brincadeira que se tornou séria na medida em que nos tocava a todos. Ele fazia-nos bem.”

Sérgio Fernandes conheceu o, agora humorista, Diogo Batáguas em 2007, então jornalista do Rádio Clube Português, quando tomou conhecimento da existência dos Devotos de Neno e se interessou pelo fenómeno. Apesar de manterem apenas um contacto esporádico ao longo dos anos, reencontraram-se quando Sérgio foi convidado para participar no programa de YouTube de Batáguas, o Relatódio DB, após a morte de Neno. Anos depois, com a reformulação do conceito e o lançamento do programa Conteúdo do Batáguas, o comediante lembrou-se de Sérgio e convidou-o para integrar a equipa de guionistas, reconhecendo o seu humor peculiar e a criatividade demonstrada nas crónicas nenoístas. Foi assim que, quase por acaso, Sérgio passou de revisor de textos a um dos rostos da sátira nacional.

A mesma energia criativa que deu origem à religião, deu também forma ao Vitória Clube de Santarém. Criado inicialmente como equipa informal de rua, nos jogos entre a “rua de cima e a rua de baixo do Alto do Bexiga”, o clube foi-se estruturando até ser formalmente fundado em 2005. Hoje, é o segundo maior clube de futsal do país em número de atletas e um dos emblemas históricos da cidade de Santarém.

E aqui, os Devotos de Neno reaparecem. “Temos várias camadas jovens com miúdos que já conhecem a religião. Há um miúdo que tem uma camisola de jogo a dizer ‘Devoto de Neno’. Quando entro no balneário com o cachecol do Neno, percebem que o jogo é sério.”, garante

A fé passou de geração em geração e já há “Devotinhos de Neno nas camadas jovens do clube. As novas gerações que herdam o espírito. Há festejos com cachecóis, orações antes dos jogos e, claro, muitas referências ao Deus das balizas.”