
Portugal não precisa de sangue puro. Precisa de memória e honra.
Por Carlos Papafina, antigo militar paraquedista ao serviço de Portugal e de todos os portugueses
As cerimónias do passado 10 de julho foram mais do que rituais de Estado — foram, para quem quis escutar, momentos de afirmação nacional e também de confronto com verdades incómodas.
A escritora Lídia Jorge, com a sensibilidade que sempre a caracterizou, sublinhou que a memória coletiva é um bem comum que não pode ser abandonado, e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lembrou-nos com frontalidade que “não há portugueses puros, como não há brasileiros puros”. Estas palavras, que causaram algum desconforto a setores mais reacionários, foram das mais importantes proferidas nos últimos anos por um Chefe de Estado.
E porquê? Porque desmontam de vez um mito persistente e perigoso: o da pureza de sangue. Como antigo paraquedista, que serviu Portugal nos limites do esforço e do risco, recuso que o valor de um cidadão português se meça por linhagens ou ascendências. Aquilo que nos une não é o ADN — é o compromisso. É a entrega. É a verdade com que se serve a Pátria, independentemente da cor da pele, do sotaque ou da origem do nome.
Portugal não foi construído na pureza — foi forjado no encontro de povos, de culturas, de destinos cruzados. Somos filhos dos celtas e dos romanos, dos árabes e dos africanos, dos descobridores e dos descobertos. Negar esta realidade é não perceber a alma do país que se diz amar.
Senti orgulho ao ouvir o Presidente. E senti vergonha pelos murmúrios que se levantaram como resposta, vindos de vozes que ainda insistem num ideal retrógrado de identidade. Quem assim fala, trai os que caíram por Portugal sem nunca perguntar quem eram os seus bisavós. Os verdadeiros heróis da nossa História, nos campos de batalha e fora deles, serviram por dever, não por sangue.
Neste tempo em que se tenta, por vezes subtilmente, reabilitar ideias que deviam envergonhar qualquer democracia madura, é essencial deixar claro: Portugal não precisa de “sangue puro”. Precisa de cidadãos inteiros.
Precisamos de memória, sim. De saber quem somos. Mas também de coragem para rejeitar o passado quando ele tenta voltar mascarado de orgulho patriótico. Ser patriota é defender a Constituição, é respeitar a diferença, é honrar os mortos — todos — que fizeram de Portugal o que ele é: um país pequeno em território, mas enorme na sua diversidade e na sua dignidade.
Como cidadão, como português e como antigo militar, deixo esta mensagem clara: não admitamos que a ignorância sobre a nossa identidade seja usada como arma política ou social. E não deixemos que o silêncio legitime discursos que colocam em causa o verdadeiro valor de ser português: a capacidade de acolher, de resistir e de construir juntos.
Portugal não é puro. Ainda bem. É complexo, plural e orgulhosamente humano.