
Ainda que os livros tenham atuado como "um refúgio" ao longo da sua vida, só no ensino secundário é que o 'bichinho' da escrita se apoderou de Catarina Silva. Longe estava o seu eu adolescente de adivinhar que, aos 21 anos, seria a primeira autora de ficção fantástica da Manuscrito, chancela do Grupo Editorial Presença - mas aconteceu.
'Gladiadora', a sua obra de estreia, brotou de um "coração vazio", que se foi "enchendo capítulo a capítulo". Aliás, foi em Genevieve, a protagonista da trama, que Catarina Silva encontrou não só "a revolta contra a dor que sentia, mas também a coragem de que precisava para enfrentá-la".
Em conversa com o Notícias ao Minuto, a jovem licenciada em Matemática Aplicada à Economia e à Gestão e mestranda em Ciência de Dados confessou escrever "mais por precisar do que por querer", ambicionando que os leitores encontrem nos seus enredos e personagens "consolo quando precisarem e coragem quando lhes faltar". É que, conforme asseverou, "só porque uma personagem é inventada não quer dizer que não seja real".
'Gladiadora', de Catarina Silva© Grupo Editorial Presença
O que é que a motivou a enveredar pelo mundo da escrita, tendo em conta que é licenciada em Matemática Aplicada à Economia e à Gestão e mestranda em Ciência de Dados?
Livros sempre foram um refúgio, gosto de ler desde pequena. A escrita foi uma paixão que descobri alguns anos mais tarde, durante o meu ensino secundário. Na altura, surgiu-me a ideia para uma história, mas não sabia propriamente o que fazer com ela, e foi apenas por incentivo de uma amiga que sequer ponderei em escrevê-la. Acontece que, depois de começar, nunca mais parei.
De que forma é que alia os seus conhecimentos matemáticos à literatura? Ou não há influência?
Deixa sempre alguns leitores... não diria confusos, mas sim curiosos, como é que concilio as Letras e as Ciências. São duas paixões que não vejo como 'adversárias', e até costumo dizer que, apesar de as pessoas os verem como dois mundos muito diferentes, são mais complementares do que imaginam: Matemática ensinou-me a pensar de forma metódica e sequencial, e isso reflete-se, sem dúvida, no meu processo de escrita; sobretudo a organizar as ideias soltas na minha cabeça.
Do mesmo modo, a minha veia mais criativa também sangra para a minha vida profissional. É ela que me permite ‘pensar fora da caixa’ e aventurar-me para lá daquilo que sei, tal como a adaptar-me às constantes mudanças e exigências do mercado de trabalho.
Há poder nisso, em descobrirmos partes de nós que não conhecíamos, reinventarmo-nos as vezes que quisermos (e precisarmos). Na Genevieve, por exemplo, encontrei a revolta contra a dor que sentia, mas também a coragem de que precisava
Confessou que a história de Genevieve "nasceu de tristeza, perda e, sobretudo, raiva". Aliás, precisou de a escrever antes que a "consumisse". Faz uso da escrita enquanto curativo para as moléstias da vida? Acredita neste poder da literatura?
A cem por cento. Aliás, escrevo mais por precisar do que por querer. Quando comecei e estava ainda a descobrir a minha escrita, ajudava-me fazê-lo de perspetivas com as quais me identificasse e, nesse sentido, meio que me canalizava para a personagem. Hoje em dia, o processo é o contrário. Conheço melhor a minha voz de escritora e já me é mais fácil ver através dos olhos de outras personagens que me sejam mais distantes.
Ainda assim, sinto que há sempre um bocadinho de mim em todas elas (umas mais do que outras, é verdade, mas em todas, não obstante) e quanto mais aprendo sobre elas, mais aprendo sobre mim. Há poder nisso, em descobrirmos partes de nós que não conhecíamos, reinventarmo-nos as vezes que quisermos (e precisarmos). Na Genevieve, por exemplo, encontrei a revolta contra a dor que sentia, mas também a coragem de que precisava para enfrentá-la.
Concretamente, como é que construiu o universo apresentado aos leitores em ‘Gladiadora’? Foi um processo moroso? O que é que foi, para si, mais surpreendente?
Foi, francamente, divertido. Claro que, depois, havia dias e dias: nuns sentava-me e passava horas a olhar para a folha em branco, noutros parecia que não existia papel suficiente no mundo para tudo o que queria escrever. Há uns anos, já tinha tido a ideia de brincar com o conceito de dualismo, e foi ele a primeira semente de ‘Gladiadora’. A presença mais óbvia disso no livro é capaz de ser o mundo em si, onde numa metade faz sempre dia e noutra faz sempre noite. Acho, porém, que mais interessante do que descobrir o universo foi descobrir as personagens.
Uma das minhas autoras preferidas descreveu o processo criativo como "aprender um jogo novo", e subscrevo totalmente — ao início é um tanto estranho, e até mesmo frustrante, mas a partir do momento em que memorizamos as regras, torna-se muito divertido jogá-lo.
Há magia nas palavras, há realidade na ficção. Só porque uma personagem é inventada não quer dizer que não seja real. Como é que haveria de não ser, quando aquilo que ela nos faz sentir é real?: os risos que soltamos quando ela faz uma piada, as lágrimas que choramos quando ela se magoa — não há nada mais real do que isso
Admitiu ser protetora de Genevieve, por ter crescido e recuperado "a seu lado". Ainda assim, que outra personagem lhe deu mais satisfação construir? Porquê?
O Will foi uma caixinha de surpresas; não era suposto ter tido um papel tão importante como teve e, nesse sentido, surpreendeu-me bastante. Mas acho que a minha resposta final vai ser a Maya, porque é simultaneamente uma das minhas personagens mais fracas e mais fortes (quanto ao porquê, vão ter de ler para descobrir).
De facto, o livro aborda vários temas, desde o poder da amizade e a necessidade de estarmos abertos à possibilidade da perda, até à dor avassaladora do luto e às feridas do passado, passando pelo feminismo e pela realidade da guerra. São tópicos que a movem?
Sim, sem dúvida. Como disse, acredito cegamente no poder da literatura. Há magia nas palavras, há realidade na ficção. Só porque uma personagem é inventada não quer dizer que não seja real. Como é que haveria de não ser, quando aquilo que ela nos faz sentir é real?: os risos que soltamos quando ela faz uma piada, as lágrimas que choramos quando ela se magoa — não há nada mais real do que isso. Por isso, sim, insiro na minha escrita tópicos que me movem e que espero que movam outras pessoas. Quero que os meus leitores encontrem nas minhas personagens consolo quando precisarem e coragem quando lhes faltar.
Às vezes, ainda não acredito que tenha sido possível que algo tão bonito tenha nascido de algo tão feio. Sinto que comecei este livro de coração vazio e que o fui enchendo, capítulo a capítulo
O que é que a levou a optar por nomes estrangeiros (à exceção de Paulo, creio)? Pretendia jogar ainda mais com a ideia de ser um universo fantasioso?
Honestamente, não foi uma questão na qual tenha sequer pensado na altura. O próprio conceito de 'português' não existe no universo de ‘Gladiadora’, tal como não existe de 'alemão', 'italiano', etc. Existem vários reinos, é verdade, com um vasto espetro de idiomas, mas nenhum que conheçamos na nossa realidade. A minha preocupação, acima de tudo, era que o nome se adequasse à personagem.
Como é que tem sido a receção desta obra? O que é que sente? Os sentimentos de "tristeza, perda e, sobretudo, raiva" de que falou foram apaziguados?
Muito para lá de tudo o que poderia imaginar, os leitores tem-me recebido a mim e à Genevieve de braços abertos, e não poderia estar mais grata. Às vezes, ainda não acredito que tenha sido possível que algo tão bonito tenha nascido de algo tão feio. Sinto que comecei este livro de coração vazio e que o fui enchendo, capítulo a capítulo. Escrever ‘Gladiadora’ ensinou-me que o fim do livro não é necessariamente o fim da história.
Já considerou a possibilidade de uma prequela ou sequela para este universo, ou quer dar esta história por encerrada? E que projetos tem em mãos neste momento?
‘Gladiadora’ sobrevive como uma história individual. No entanto, quando cheguei ao final do livro, percebi que havia mais história, e adorava contá-la. Mas veremos. Tenho muita vontade de escrever, agora é esperar que os leitores também tenham muita vontade de ler.