A água em Portugal é um tema que traz grandes desafios. Mas Portugal não é um país pobre em recursos hídricos quando comparado com outros países europeus, de acordo com Gonçalo Matias, Presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos.

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Em termos médios, e por habitante, a quantidade de água que flui pelos nossos cursos hídricos, o chamado “escoamento anual”, é superior, por exemplo, ao da Grécia, França, Itália ou Espanha.

Relembramos que um metro cúbico corresponde a mil litros de água: Portugal dispõe de cerca de sete mil metros cúbicos anuais de água por habitante, que é um valor muito acima dos 2.500 metros cúbicos considerados como valor de referência, abaixo do qual um país se torna vulnerável à escassez de água.

A questão é que o clima mediterrânico que abrange Portugal caracteriza-se por ter uma precipitação muito variável.

Primeiro, variável em termos territoriais. Por exemplo, no norte do país a precipitação anual média é cerca de cinco vezes superior à registada no interior alentejano.

Mas a precipitação também é muito variável em termos temporais. Nos anos mais secos, o nível de precipitação chega a ser um terço do registado nos anos mais húmidos. E tem uma sazonalidade muito acentuada.

A precipitação varia em termos do território e também de ano para ano. Como é que varia ao longo de um mesmo ano? As alterações climáticas têm alguma coisa a ver com isso?

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Como vemos no gráfico, durante o ano, quase 85% da precipitação anual média em Portugal Continental ocorre entre outubro e abril. Depois desse período, desce significativamente e é praticamente nula de maio a setembro, no sul do país.

As alterações climáticas

É verdade que as alterações climáticas já têm tido impacto e deverão continuar a tê-lo.

As alterações climáticas têm conduzido a uma redução da precipitação, mas, além disso, o aumento da temperatura também leva a que haja maior evaporação de água. Isso traduz-se na redução do chamado “escoamento de água”, a quantidade de água que temos disponível.

Os cenários mais gravosos para o futuro apontam para reduções de 40% dessa disponibilidade até ao final do século XXI, quando comparado com o período histórico.

Importa ainda lembrar que a maior parte do território continental português situa-se em bacias hidrográficas internacionais que são partilhadas com Espanha, país que enfrenta os mesmos desafios da gestão da água e até de forma mais acentuada.

Portugal tem uma longa história de acordos com Espanha sobre a partilha das águas, nomeadamente a Convenção de Albufeira, cujos termos foram atualizados em 2024. No entanto, nós temos uma posição fragilizada por estarmos a jusante em todas bacias hidrográficas partilhadas, o que nos coloca um pouco à mercê da gestão feita do lado espanhol.

A precipitação instável

É esta precipitação variável que limita a disponibilidade de água em algumas zonas do país?

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Sim, a variabilidade e a assimetria da precipitação condicionam a disponibilidade de água e a capacidade de responder às necessidades de forma regular, sobretudo nos períodos e nas regiões mais secas.

Em Portugal continental, metade da água captada anualmente existe à superfície (como rios e lagoas), enquanto as origens subterrâneas fornecem a outra metade.

Essa distribuição varia ao longo do território, nomeadamente consoante a existência de mais ou menos áreas geológicas capazes de armazenar água subterrânea, os chamados aquíferos. Mas esta distribuição quase paritária entre águas superficiais e subterrâneas é comum a muitos outros países do mundo. Sobretudo no sul do país, há grandes fragilidades para satisfazer as necessidades de água, tanto as atuais como as futuras.

E prevê-se até que essas fragilidades aumentem em resultado das alterações climáticas e do aumento da procura de água.

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Para dar uma resposta a esse problema, Portugal tem vindo a construir barragens ao longo da sua história e sobretudo a partir de 1950.

Por exemplo, tendo em conta a precipitação destas últimas semanas, neste momento a grande maioria das albufeiras do país, que são os grandes reservatórios de água doce formados através da construção de barragens, está com água acima dos 80% da capacidade.

Quase todas as bacias hidrográficas do continente estão acima da média e a capacidade de armazenamento a 92%.

O armazenamento de água em albufeiras contribui para atenuar as dificuldades na disponibilidade de água, em particular nos períodos mais secos. Mas é uma solução que acarreta custos económicos e ambientais, além de estar sujeita a limites físicos.

Qual a capacidade de Portugal para armazenar água em albufeiras?

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Portugal está próximo de Espanha nos níveis de capacidade de armazenamento em albufeiras, com cerca de 1135 metros cúbicos por habitante, mais do dobro da média da União Europeia, que ronda os 435 metros cúbicos. Ligeiramente à frente de Portugal está a Grécia e o topo deste ranking é ocupado pela Suécia e Finlândia, com cerca do triplo da capacidade de Portugal e de Espanha.

A construção de novas barragens e uma melhor exploração de recursos subterrâneos são formas possíveis de aumentar a disponibilidade de água nos períodos mais secos, mas esta aposta está a atingir o seu limite, tendo em conta a capacidade de armazenamento já instalada e a exploração intensa dos sistemas aquíferos, ou seja, de águas subterrâneas.

Pensar em construir novas barragens ou interligá-las deve, por isso, ser muito bem estudado, requerendo uma análise custo-benefício abrangente, para ter em conta, por um lado, custos de construção, operação e manutenção e, por outro lado, os custos ambientais das diferentes alternativas.

Quais os setores que gastam mais água?

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A agricultura é o grande utilizador de água e isso acontece tanto em Portugal como em Espanha. A nível nacional, quando olhamos para a distribuição do uso da água, percebe-se que a agricultura é responsável por mais de três quartos do volume de água captada e que é usada na rega.

Quanto aos outros setores, a seguir à agricultura vem o uso de água pela população - a chamada utilização urbana, que representa 15% do total. A seguir está a indústria, ainda que com necessidades significativamente mais baixas do que a agricultura.

Mas há uma grande variação dentro do próprio território na utilização que é feita pelo setor agrícola.

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No continente, as terras agrícolas representam 40% da superfície do território, mas só 15% dessa área agrícola é objeto de rega.

Na verdade, a maioria das culturas são em regime de sequeiro, o que significa que a produção depende exclusivamente da água da chuva, usando a humidade do solo, sem necessidade de irrigação artificial. As áreas de regadio têm uma distribuição variável no país.

As regiões hidrográficas com maiores áreas regadas são a do Tejo e Ribeiras do Oeste, a do Sado e a do Guadiana, que coincidem com as regiões mais secas.

Em Portugal continental, existem atualmente 560 mil hectares de área agrícola que tem de ser regada, - para percebermos bem a dimensão, um hectare corresponde a um campo de futebol - e há projetos e pretensões para aumentar este valor de forma significativa.

Se, por um lado, a produção agrícola por regadio permite culturas de maior valor acrescentado e uma maior estabilidade dos rendimentos das empresas agrícolas, o seu aumento colocará mais pressão sobre os recursos hídricos.

Quanto é que essa área agrícola - que tem de ser regada - já aumentou nos últimos anos?

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Entre 2009 e 2019, a área de rega aumentou em cerca de 100 mil hectares, sobretudo no Alentejo, onde mais de 89 mil hectares começaram a ser regados na zona de influência do Alqueva. A tendência de aumento das áreas regadas deverá manter-se e estão aprovados ou em curso mais 75 mil hectares de regadio, a desenvolver na próxima década.

A questão é que, além do aumento da área de rega, também mudou o tipo de culturas que ocupam esta área. A superfície de culturas permanentes de regadio aumentou em 118 mil hectares, com destaque para a vinha e para o olival. E em termos percentuais, os frutos de pequena baga (como amoras, framboesas ou mirtilos) e os frutos de casca rija (como amêndoas, castanhas ou pistachos) foram as culturas que mais cresceram.

Ao expandir o regadio e as culturas permanentes (como o olival ou o amendoal), perde-se a flexibilidade que as culturas anuais (como cereais ou hortaliças) permitem, porque essas podem até nem ser cultivadas em anos mais secos, ajustando-se à disponibilidade de água.

Que regiões vivem uma situação de escassez de água?

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A escassez hídrica é definida como uma situação crónica em que a procura de água é da mesma ordem de grandeza da disponibilidade de água. Isto quer dizer que a oferta se aproxima da procura. E nesses casos há o risco de as atividades humanas e de os ecossistemas poderem ficar comprometidos.

O sul de Portugal sofre de escassez de água. Essas assimetrias ficam claras quando olhamos para o chamado Índice de Escassez Hídrica, que vemos no mapa, um indicador adotado pela União Europeia, para quantificar a escassez de água nas bacias hidrográficas.

Enquanto na região do Minho e Lima o nível de escassez é inferior a 10%, no sul do país ronda os 60%. Também o rácio entre o volume de água utilizado e a disponibilidade de água é de 60% no Alentejo e Algarve, quando a média nacional é de 45%.

No caso do Algarve, a disponibilidade de água por habitante é inferior a 1000 hectómetros cúbicos por ano, sete vezes menos do que a média de Portugal Continental.

Como lidar com a escassez da água?

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Há várias medidas importantes que podem ajudar nesse desafio. Uma delas é a redução, a curto prazo, das perdas físicas no abastecimento de água, que rondam os 20% a 30% nas áreas urbanas e chegam a superar os 40% no setor agrícola.

Para isso é necessário melhorar algumas redes de distribuição, sobretudo em municípios mais pequenos, e investir na melhoria dos canais de rega entre a captação e a parcela agrícola, que é onde há um volume maior de uso de água e também maiores perdas.

Ajudaria também investir no apoio a alguns agricultores para modernizarem os seus sistemas de rega tradicionais.

Outra das medidas é a diversificação da oferta de água, por exemplo através da reutilização de águas residuais e da dessalinização da água do mar. Só 1,2% das águas residuais tratadas são reutilizadas e há uma única central de dessalinização, que fica no Porto Santo, estando outra em vias de ser construída em Albufeira, no Algarve.

É importante pensar também num maior controlo da procura de água, assumindo que nem todas as pretensões de uso poderão ser satisfeitas, caso se trate de utilizações menos produtivas ou menos úteis à sociedade. E faz também falta apostar numa melhoria do conhecimento sobre gestão de recursos hídricos, que é uma área que tem sido subfinanciada.

Em resumo, a solução para o desafio da escassez de água em Portugal está numa gestão integrada dos recursos hídricos, pondo em prática estas soluções em simultâneo, de forma a não comprometer a sustentabilidade dos ecossistemas daqui em diante.