
Diz quem o conhece que é nos treinos de inverno, nas pedaladas longe dos holofotes com Urška Žigart, ciclista eslovena de bom nível que também é sua namorada, que Tadej Pogačar fala sobre os ambiciosos planos que lhe passam pela cabeça. É nesse anonimato, rodando em novembro ou dezembro para se preparar para a temporada, que se cozinha a ideia de disputar o Paris-Roubaix ou de, em 2024, fazer o Giro antes do Tour. Ou de ganhar em Paris vestido de amarelo.
Pogi, um poço de força e energia, um talento selvagem, alegre, terá partilhado com Urška a sensação de que, em 2025, voltar a dominar a Volta a França seria mais difícil. Vingegaard, ao contrário do que sucedeu em 2024, não chegava diminuído por qualquer lesão, haveria que contar com o craque dinamarquês e com a Visma, uma equipa especialista em armadilhas.
Consciente do nível da oposição, o esloveno, que aterrou no Tour após mais uma brilhante campanha de clássicas (conquistou Strade Bianche, Tour de Flandres, Flèche e Liège), quis impor as suas condições desde o quilómetro zero. A meio da Volta a França, o campeão do mundo já tinha a corrida no bolso, arrasando, trucidando os adversários física e mentalmente, sendo uma fonte de acelerações constantes.
À etapa 13, Tadej já tinha mais de quatro minutos de vantagem para Vingegaard. Até Paris foi só ir gerindo a diferença, voltando a consagrar-se na capital francesa. Mas não só em passeio. Fez reset e, a fechar, retornou à versão canibal, atacou no empedrado de Montmartre. Mas foi fintado por Wout van Aert, um craque a voltar aos grandes momentos.
Pela quarta vez na carreira, Pogačar conquistou a maior prova das bicicletas. A glória de 2025 segue-se à de 2020, 2021 e 2024, com triunfos de Jonas pelo meio. O duo continua a monopolizar os dois primeiros lugares do pódio: o esloveno em primeiro e o dinamarquês em segundo em 2021, Vingegaard em primeiro e Pogačar em segundo em 2022 e 2023, Pogi em primeiro e Jonas em segundo em 2024, as mesmas posições de 2025.
Com este tetra, o rapaz que em 2020 surpreendeu o mundo ao roubar o Tour a Primož Roglič iguala a quantidade de vezes que Chris Froome foi consagrado nos Campos Elísios. Fica só a uma vitória da mão-cheia de Miguel Induráin, de Bernard Hinault, Jacques Anquetil e Eddy Merckx, os recordistas na grande boucle.
Foi mais um verão em que o fenómeno esloveno pareceu competir mais contra Hinault ou Merckx do que perante Vingegaard ou Evenepoel. Nenhum dos ataques que Jonas lhe fez teve efeito, nunca estando em causa uma vitória que evidenciou a superioridade de um corredor universal, que ganha na alta montanha ou em colinas, no contrarelógio ou acelerando contra Mathieu van der Poel.
O novo tetracampeão ganhou quatro das primeiras 13 tiradas, duas semanas em que também ficou duas vezes em segundo. Foi a fase do predador, do açambarcador, do ciclista homem do Renascimento, que tudo faz, cheio de sonhos e hipóteses.
Só no crono de Peyragudes e em Hautacam ganhou 2,46 minutos a Jonas, que foi sempre segundo nesses momentos decisivos. No único esforço individual puro, em Caen, ficou atrás de Evenepoel, mas gastou menos 1,05 minutos do que Vingegaard. Este trio de dias explica a maioria dos 4,24 minutos entre ambos.
O líder da Emirates superou as 100 vitórias na carreira, chegou às 21 no Tour, passando a estar a 14 do recorde de Mark Cavendish. A aposta da Visma foi atacando até perder a esperança, aceitando o segundo lugar como quem sabe que depois do dia vem a noite.
A discussão da última posição do pódio foi perdendo fortes candidatos, de João Almeida a Remco Evenepoel, ficando para Florian Lipowitz, camisola da juventude e talentoso alemão, país que bem precisa de uma referência assim. O top 10 teve vários passageiros inesperados, como Oscar Onley (4.º), Tobias Halland Johannessen (6.º), Kévin Vauquelin (7.º) ou Jordan Jegat (10.º), sem esquecer o herói Ben Healy, 9.º, portador da camisola amarela, vencedor de etapa e corredor de culto.
A última etapa do Tour fugiu da habitual procissão pouco competitiva até ao sprint na avenida mais famosa de Paris. Inspirados pelo êxito do traçado dos Jogos Olímpicos, os organizadores quiseram colocar uma pequena clássica a fechar a Volta a França, com um circuito final a subir as ruas empedradas e pitorescas de Montmartre.
Desde o arranque das três semanas que se pensou que Pogačar, o ambicioso e amante do icónico Tadej, marcaria esta jornada no calendário, quereria festejar em Paris vestido de amarelo, algo que só Hinault, em 1982 e 1979, logrou. Pogi vinha, por cansaço, precaução ou outra razão qualquer, sendo mais calculista, mas não temeu a chuva e atacou para triunfar na capital.
Quatro etapas, quarto Tour, que mais querem? O camisola amarela quis mais. Assumiu a iniciativa, foi na ofensiva, chegou à última passagem pelas rampas que dão ao Sacré Cœur integrado num pequeno grupo. Quando se achava que todos só reagiriam, Van Aert contra-atacou e superou Tadej, com um levantar de braços histórico nos Champs-Élysées, uma fotografia que consagra um predestinado.
Antes de Paris, Pogačar teve uma semana final estranhamente conservadora, ao mesmo tempo que se queixava da dureza do Tour — "esta foi, mesmo, a edição mais difícil —, reclamava do frio — "não parece verão, estou a gelar" — e apontava a ausência de João Almeida como razão para esta ponta final ter sido "mais stressante" e menos "controlada".
Com uma face a roçar o entediado nas cerimónias de pódio da última semana, Pogi resumiu a sua intenção antes da 19.ª jornada. "Estou a contar os quilómetros até Paris". Depois de esmagar no arranque, de deixar claro que ninguém se lhe pode aproximar no ciclismo atual, Tadej mostrou uma nova roupagem, a do chego até ao fim sem problemas e adeus, interrompida pela gula de ser herói de amarelo a descer Montmartre. Agora já pode voltar para junto de Urška Žigart, mas, atendendo ao que o campeão do mundo vem dizendo — "quero voltar a fazer coisas divertidas" —, talvez não seja para treinar.
O monstro também precisa de férias, mas vai para elas depois de mais um banho de glória. O Tour é, outra vez, de Tadej Pogačar, o impossível em cima de duas rodas.