Ser de carne e osso é a prova fundamental da imperfeição. Mais cedo ou mais tarde, o sangue ferve acima dos graus aceitáveis e a compostura rebenta.

A Paulo Fonseca, treinador de méritos reconhecidos e gestos afáveis, aconteceu no passado domingo durante o Lyon-Brest.

qO Paulo é uma pessoa íntegra, educada e muito serena. O acontecimento no jogo com o Brest em nada reflete a personalidade do Paulo
Tiago Pinto
Inconsolável com o cartão vermelho exibido pelo árbitro Benoît Millot, Fonseca promoveu um encosto de testas e vociferou impropérios percetíveis em qualquer dialeto.

Condenável, naturalmente, mas também surpreendente por se tratar de um protagonista de hábitos cavalheirescos.

O zerozero procurou uma reação de Paulo Fonseca, alguma explicação ou atenuante para uma atitude tão agressiva e desajustada. Fonseca prefere, nesta altura, o recato.

Pessoas próximas falam-nos em dias «tristes e de reflexão», explicações que nos levam, precisamente, para as únicas palavras do antigo treinador de FC Porto, SC Braga e Paços de Ferreira sobre o incidente.

«Só posso dizer que peço desculpa por esse gesto, não o devia ter feito. O futebol... às vezes fazemos as coisas mal.»

Além do castigo a aplicar pela liga francesa, Paulo Fonseca será punido internamente pelo Olympique Lyon. Dias duros em França e num período em que o seu novo clube dá finalmente sinais de retoma – três vitórias nos últimos quatro jogos.

«Se ele pudesse voltar atrás no tempo não hesitaria»

No decurso das conversas feitas junto de fontes ligadas a Paulo Fonseca, o zerozero confirmou que a ligação umbilical à Ucrânia continua a ser um fator sensível no equilíbrio do português.

Fonseca esteve de 2016 a 2019 no Shakhtar Donetsk, casou com uma cidadã ucraniana e sentiu de forma contundente os efeitos da invasão russa.

A viver agora sozinho em Lyon e com a família em Itália, Paulo Fonseca tem passado as últimas semanas mais preocupado com esta questão.

A chegada de Donald Trump ao poder nos EUA, associada diretamente à decisão norte-americana de interromper o auxílio ao país, criou uma sensação de desassossego compreensível em quem tem ainda muitos entes queridos no território agredido.

Darijo Srna, histórico internacional ucraniano e treinado por Fonseca no Shakhtar, diz ao zerozero estar «surpreendido» com o comportamento recente e pede compreensão.

«Trabalhei com o Paulo no Shakhtar durante vários anos e posso dizer que ele sempre foi um exemplo de profissionalismo. Era um treinador de alto nível e uma ótima pessoa, que sempre interagiu de forma positiva com a sua equipa técnica e os seus jogadores», diz-nos o recordista de jogos pelo emblema de Donetsk – 536 jogos oficiais.

Deco, por seu lado, nunca trabalhou diretamente com Fonseca, apesar de lidar regularmente com o agora treinador do Lyon.

«O Paulo Fonseca sempre foi um profissional exemplar, dentro e fora de campo. Quem o conhece sabe do seu caráter íntegro, da sua paixão pelo futebol e do respeito que tem pelo jogo e por todos os seus intervenientes.»

O antigo ‘Mágico’ admite uma «situação de tensão», mas adverte que o recém-ocorrido não apaga «uma trajetória de seriedade e compromisso» com o futebol.

O tom mantém-se nas palavras de Tiago Pinto, atual dirigente do Bournemouth e que coincidiu com Paulo Fonseca na AS Roma.

«O Paulo é uma pessoa íntegra, educada e muito serena. O acontecimento no jogo com o Brest em nada reflete a personalidade do Paulo», sublinha o antigo diretor do Benfica, antes de falar num «caso isolado».

«Acredito que um conjunto de vários fatores excecionais tenham levado o Paulo a agir daquela forma. Do que conheço dele, estou seguro de que estará arrependido e se pudesse voltar atrás no tempo, não hesitaria. No futebol as emoções por vezes levam-nos para situações inesperadas e depois arrependemo-nos.»

@Getty /

Situação «anormal e excecional»

Depois do Shakhtar e da Roma, Paulo Fonseca passou dois anos no Lille e nos dogues treinou José Fonte. O internacional português, atual jogador do Casa Pia, fala-nos de uma pessoa «respeitadora, educada e profissional».

«Todos aqueles que trabalharam e privaram com ele sabem isso. Foi uma situação anormal e excecional, tenho a certeza que nunca voltará a acontecer.»

No momento mais duro da carreira, Paulo Fonseca mantém a admiração dos que lidaram com ele mais diretamente.

No passado domingo, o coração bateu demasiado depressa, a emoção roubou-lhe a razão.

Uma atitude desadequada e condenável, certamente a merecer uma punição, mas que não apaga os muitos anos de correção.

Paulo Fonseca tem 51 anos e é treinador desde 2005, há 20 anos. Iniciou-se na formação do Estrela da Amadora e passou por 1º Dezembro, Odivelas, Pinhalnovense e Aves até se estrear em 2012/13 na I Liga pelo Paços de Ferreira.

Na Mata Real fez história e levou os «castores» a um impensável terceiro lugar no campeonato e a uma qualificação para os playoffs da Liga dos Campeões.

Foi contratado pelo FC Porto, regressou à Mata e saiu para o SC Braga, antes de chegar em 2016 à Ucrânia. Nove anos depois, continua a sentir como poucos o martirizado estado.