Saiu na rifa à Arábia Saudita que o ocaso de uma lenda, a primeira de duas paragens da sua tournée de adeus, calhasse ser no pequeno estádio construído de fresco, com 8 mil lugares, especialmente por ocasião do torneio que nem feijões conta para o totobola da ATP, encafuado em outubro e em simultâneo com duas provas que, de facto, valem pontos, essas em Estocolmo e Antuérpia, a dezenas de milhares de quilómetros da Riade em esteroides, inchada de purpurinas projetadas no court num espetáculo de realidade aumentada que prolonga um pouco a espera dos tenistas no túnel.

Antes de mais, houve o champomy virtual, fiel ao apetrechado vídeo de promoção do Six Kings Slam estericamente ficcionado com uma narrativa em que uns tenistas eram guerreiros vikings na neve, outros um Lancelot na floresta ou aventureiros de arco e flecha para estimularem o interesse por um torneio artificial que arremessou dinheiro para cima do seu apetite, jogadores incluídos: o Rafael Nadal a jogar a sua derradeira prova fora de Espanha e o Carlos Alcaraz que o idolatra receberam ambos, só por lá estarem, €1,3 milhões de euros, a par de Holger Rune, Novak Djokovic e Jannik Sinner. Nenhum tão rei de significado quanto o mais velho dos espanhóis.

Sim, o supérfluo pairava no ar, o mesmo oxigénio onde ‘Rafa’ pulou no túnel, bateu pancadas imaginárias no vazio, uns passinhos para a esquerda, os equivalentes para a direita, a sua síncope lateral do costume que o tico e o teco de tantos adversários atemorizou naqueles segundos de espera para entrar em campo ao longo dos anos. Mas não ali, havia um quê de cavaqueira com ‘Carlitos’, o petiz que conhece e com quem partilhou court no seu Roland-Garros, no verão, a fazer dupla nos Jogos Olímpicos desde os quais não competia. Anunciada a retirada de Nadal, a coincidência - será mesmo? - de o primeiro dos cortinados se fechar na Arábia Saudita seria sempre um espetáculo de hábitos antigos.

A fita na testa a imobilizar a cada vez maior míngua de cabelo, os tiques obsessivos da mão que puxa os calções, toca na orelha, depois no nariz, ainda a outra a orelha antes de o braço limpar a cara, até com a raquete Nadal bateu, às tantas, em cada calcanhar, como se na sola dos calcantes estivesse terra batida agarrada e não marcas do piso rápido onde Alcaraz, sem piedade, lhe roubou logo o serviço, ganhou os oito primeiros pontos e forçou o ancião a ter gestos de desalento com ele próprio, o cabisbaixo a abanar em negação.

Enferrujado pelo corpo fustigado por mazelas, algo preso de movimentos, Nadal demorou a solar o arpão que mora no seu braço esquerdo. Mas, quando reclamou o terceiro jogo e em branco, o fio da oscilação ficou menos bambo. Vislumbrou-se então um pouco dele, pepitas do seu ténis. As direitas top spinadas que abananavam as viagens da bola, algumas até mortíferas de dentro para fora do campo, as esquerda cruzadas e chapadas que aceleravam os pontos, de quando em vez um amorti malandro.

Quando o primeiro set se precipitou para a conclusão, os grunhidos de ‘Rafa’ ouviam-se a preceito, ele já solto, oleado nas articulações, o corpo a dar seguimento à intacta mente que o fazia tentar bolas impossíveis que falhavam as linhas por uma nesga. O 6-3 sorriu ao gaiato, esbanjador de uma potência nas pancadas que já sumiu das possibilidades de Nadal, súbdito no respeito à lenda, aplaudindo-lhe pancadas um par de vezes, porém indomável no jogo, contestável por ‘Rafa’ apenas em certos pontos.

Alcaraz está no espetro oposto do tempo, benéfico em tudo para ele e os seus músculos torneados e destapados por uma veste sem mangas, em certa medida uma bonita homenagem ao antigamente de Nadal, nos seus tempos uma rebarbadora de mangas cavas, calções à pirata e brutalidade na raquete a quem o tio Toni ensinou a trabalhar sempre mais do que era suposto, estar de boa cara no court e jamais desistir. Este tempo, o que lhe restou em Riade, não que tenha sido uma tormenta para o conquistador de 22 Grand Slams, mas foi uma constatação do esperado, inclusive talvez pelos óculos de Carlos Ramos, o retirado árbitro português sentado no alto da cadeira para ajuizar o jogo.

O break do possante Alcaraz, munido de um poderio distinto em cada culatra puxada atrás, ressurgiu cedo no segundo parcial. As implacáveis marteladas do mais novo espanhol a surgissem de um súbito arraso, como se o tenista se lembrasse subitamente de que dispunha de toneladas de força no braço e de repente pensassem em disparar um míssil. Quando Nadal não arranjava forma de trincar os pontos de início, qualquer aceleração de ‘Carlitos’ cravava o mais velho ao chão, inerte, uma das placas tectónicas do ténis a ajeitar-se ao iminente sossego.

Hamad I Mohammed

Ainda assim, Rafael Nadal teve os seus momentos. Solto no segundo set, foi capaz de domar alguns pontos, em especial quando o primeiro serviço lhe saía, as bolas a alongarem-se para perto da linha de fundo e os cantos, a parcimónia leveza de pés a bastar-lhe em pontos escolhidos a dedo para ir à rede, fechar os ângulos e fazer desfeitas ao compatriota com o seu sedoso jogo de mãos, esse imune a teias de aranha. Desabituado a presenciar ténis, possivelmente a apreciá-lo, o público saudita vociferava timidamente em cada ponto ganho pelo tenista de 38 anos, que chegou a rasgar um sorriso ao ganhar uma troca de bolas mais renhida na rede. Levantou o braço, esticou o dedo, deixou-se sorver o momento.

O 6-3 final foi uma eventualidade rotineira, um desfecho esperado já por todos os que sentiam as correntes de ar na arena vindas da raquete feita hélice de Nadal, quando o espanhol batia uma direita-helicóptero das suas, a fazer o instrumento dar a volta à cabeça após cada pancada. Parado há tanto tempo, as condições que lhe restam ainda chegaram para uns quantos beliscões a Alcaraz, sem ameaçar um incontestada a vitória para o jovem adulto que se desfez a sorrir em reverência ao ídolo quando se abraçaram na rede, ambos de dentes à mostra, a boa-disposição de adversários a prazo - daqui por um mês, em Málaga, o vitorioso de Múrcia será companheiro do derrotado de Manacor na final da Taça Davis (19 a 24 de novembro), o fechar da cortina para uma lenda.

Quando o cicerone do torneio, de microfone em punho, os chamou ao discurso, ‘Carlitos’ repetiu os “não” quando ele se atreveu a “começar pelo perdedor”. Foi o desatar do humor na noite: Alcaraz pediu que “não o tratem assim” enquanto Nadal sugeriu que “melhor isso do que ser ‘o mais velho’”. Trocaram-se elogios mútuos, o caçula aplaudiu cada intervenção do antigo, as bancadas acentuaram os aplausos e Neymar apareceu para dizer um olá e cravar uma raquete a ‘Rafa’.

Ainda haverá mais de Nadal no sábado, quando o milionário torneio o juntar na partida do 3.º lugar (uma invenção no ténis, só existente nos Jogos Olímpicos onde há uma medalha de bronze) com Novak Djokovic, mais um reencontro dos decanos rivais com mais de meia centena de batalhas. “Sinto-me apoiado e amado em todo o mundo, não vou ter oportunidade de agradecer o suficiente”, confessou o touro do pó de tijolo, cortês e afável, outro seu hábito de sempre. Na terra da Arábia Saudita, sentiu-se “afortunado por ter tido a carreira” que teve. Ainda não acabou. No tempo que lhe restam, honrem Carlos Alcaraz - não tratem Nadal como um perdedor.