
Artigo originalmente publicado a 6 de março de 2023 e recuperado na sequência do triunfo de Portugal na edição de 2025 da Liga das Nações.
De Cruyff para Martinez. Uma amizade especial, condenada à eternidade, nascida em Manchester de uma forma invulgar.
Jordi, filho do grande Johan e atual diretor desportivo do Barcelona, fala em entrevista ao zerozero sobre o novo selecionador nacional, Roberto Martinez, a poucos dias da divulgação da primeira convocatória deste novo ciclo da Seleção Nacional.
Roberto e Jordi têm 49 anos. Foram adversários nas camadas jovens do futebol espanhol, mas nada mais os unia além dessa paixão.
Cruyff crescera em Barcelona amparado (e pressionado) pela sombra do pai; Roberto trocara Lérida pelas camadas jovens do Real Zaragoza, criado por um pai aragonês (de Saragoça) e uma mãe catalã (de Balaguer).
Inglaterra juntou-os, provou que apenas a geografia os distinguia. Obcecados pela perfeição, pelo estudo do treino, Roberto e Jordi inscreveram-se juntos na universidade, quando ainda representavam o Wigan e o Manchester United, respetivamente.
«O Jordi é um dos presentes que o futebol me deu e quero-o como a um irmão», confessou o novo selecionador nacional num documentário da Informe+, em 2022.

Não há, de resto, qualquer hipérbole nesta irmandade. Basta ler a biografia de Johan Cruyff, o deus que se passeava com o 14 nas costas, para perceber que Roberto Martinez era amado e respeitado naquela casa holandesa, como se de mais um Cruyff se tratasse.
Em 2016, ano da morte do gigante da Laranja Mecânica, Roberto foi fundamental no apoio a Jordi. Os amigos, os irmãos, estão sempre lá nas piores horas. Com eles não foi diferente.
A partir de Barcelona, Johan Jordi Cruyff atende o zerozero com a abertura e a inteligência que todos reconheciam no pai. Discurso pausado, atraente, a desejar com ardência o sucesso deste outro irmão que a vida lhe deu.
De Cruyff para Martinez, de Manchester para o planeta-futebol.
zerozero - Quais as memórias do dia em que o Jordi conheceu o Roberto?
Jordi Cruyff – Há dois momentos que posso incluir nesta resposta. Primeiro, um jogo nas camadas jovens entre o Zaragoza e o Barcelona. Mas aí fomos adversários e, por isso, não me lembro tão bem do Roberto. Felizmente há fotos desse dia e isso permite-me dizer que, sim, tenho recordações do primeiro dia em que o vi.
zz – E o segundo momento, qual foi?
JC – Aí foi mais a sério. Já em adultos, conhecemo-nos em Manchester. Num restaurante. Ele jogava no Wigan e eu no United. Cruzámo-nos por casualidade, a mãe do Roberto abordou-me. Houve uma boa primeira impressão, boa sintonia, falámos bastante e nasceu uma amizade para a vida. Falamos às vezes de futebol, claro, mas temos a capacidade de distinguir o futebol e as pessoas, o futebol e a vida. Nesse sentido, julgo que a nossa amizade até é mais forte por sabermos separar as coisas.

JC –
Eu não joguei essa final, mas os jogadores do United tiveram o direito de convidar amigos para a final e o Roberto foi um deles. Estivemos juntos na bancada e lembro-me bem de levá-lo, já depois do jogo, àquilo que foi uma celebração mais privada entre os jogadores, treinadores e famílias.
zz – Apresentou-o ao sir Alex Ferguson?
JC – Sim, o Roberto ainda conseguiu tirar uma foto com o Ferguson e com o troféu da Champions (risos). São recordações bonitas e de certeza que o Roberto gostou da experiência.
zz – Há uma passagem forte na biografia do seu pai, Johan Cruyff, em que ele se pronuncia sobre amizade entre o Jordi e o Roberto.
JC – Eu não sabia que o meu pai ia escrever isso, naturalmente (risos). Fê-lo à sua maneira e no seu momento, mas admito que achei piada à forma como ele se refere ao Roberto. Dizia que o Roberto é o irmão que nunca tive e não se enganou. É um exemplo bonito da forma como os meus pais olhavam para o Roberto, uma pessoa que se tornou muito, muito próxima da nossa família. Havia, e há, confiança total no homem que o Roberto é.
zz – Ficou surpreendido com esses elogios públicos do seu pai ao Roberto?
JC - Não posso dizer que não me surpreendeu ler essa passagem, mas também devo dizer que o meu pai acertou em cheio, porque o Roberto é mesmo essa pessoa boa e confiável. Não se enganou.
zz - Como surgiu a vontade de tirarem o curso de treinador e inscreverem-se na Universidade de Manchester para o curso de marketing?
JC – Tenho de admitir que as duas ideias nasceram no Roberto. Treinávamos de manhã nos nossos clubes e tínhamos bastante tempo livre à tarde. A minha namorada, que se tornaria minha mulher, estudava na universidade e tinha os dias bastante preenchidos. Ou seja, eu e o Roberto passávamos demasiado tempo juntos sem fazer nada (risos). E houve um dia em que ele me disse ‘vamos começar a pensar no dia de amanhã’.

JC – Precisamente. ‘Jordi, já que estamos aqui em Manchester, aproveitemos o tempo livre para aprender coisas que um dia nos serão úteis’. E por isso inscrevemo-nos no curso de treinador e na licenciatura de marketing na Universidade de Manchester. Mas tenho de admitir que foi o Roberto a puxar por mim (risos). De qualquer forma, essa vontade de aprender sempre mais qualquer coisa faz parte do meu caráter. Foi uma grande ideia dele e acho que nos fez bem aos dois.
zz - Por tudo o que conhece do Roberto, que treinador/selecionador podem esperar os portugueses nos próximos anos?
JC – O Roberto já é um treinador experiente, disputou qualificações e torneios importantes com a Bélgica. Treinou uma ótima geração de futebolistas belgas e em Portugal será igual. Portugal tem uma ótima geração de futebolistas jovens, de presente e de futuro. O Roberto quando está numa seleção não pensa só no próximo jogo, pensa em muitas mais coisas: modernizar os conceitos e a forma de trabalhar, estudar e analisar a situação atual de Portugal, ver que pontos podem ser melhorados e aqueles que não devem ser mexidos.
zz – Já o vimos a preferir esquemas com três defesas, mas também optou várias vezes pelo quarteto defensivo.
JC – O Roberto é, acima de tudo, um treinador apaixonado pelo futebol de ataque, ofensivo e dominador. Gosta de ter a posse de bola e de agarrar os jogos. E é uma pessoa que defende um tipo de comunicação muito aberta com os futebolistas. É muito acessível e disponível a ajudar os atletas quando têm alguma dúvida ou algum problema. Se tiveram alguma pergunta, o Roberto estará sempre disponível. É muito dialogante com os seus.