O corpo e a respetiva sombra conhecem-se desde que nasceram. Nunca se largam. Talvez por obrigação, aprenderam a viver assim: onde está um, está a outra. Respeitam-se tanto que se imitam até em gestos de relevância mundana e na superficialidade de movimentos inócuos.
A sombra é a primeira e a última grande amizade de alguém. Está por perto, em silêncio, mesmo até quando nos esquecemos que anda à roda dos passos agitados que condenam momentos difíceis. É verdade que a sombra só existe graças à matéria que fundou o corpo, mas a lealdade da pobrezinha obriga-a a fazer parte de assuntos em que dispensava ser interveniente.
(1’- soa o primeiro silvo do árbitro; 3’- Francisco Trincão dançou o primeiro ziguezagueado em torno dos defesas, ação vilipendiada por Paulo Moreira, médio do Estrela que viu o primeiro amarelo do jogo; 9’- Jovane Cabral, ex-Sporting que foi a primeiro jogador a ser lançado a partir do banco por Amorim enquanto treinador dos leões, tentou abrilhantar o dia cinzento com um passe de calcanhar; 10’- Daniel Bragança atropelou a bola e assim, sem grande jeito, ia marcando; 19’- por falar em atropelamentos, o camião Viktor Gyökeres foi contra Ferro, amolgou-o e inaugurou o marcador)
Oficializada que está a saída para o Manchester United, Rúben Amorim ficou preso entre duas realidades: aquela em que se encontra e a outra para onde vai quando cessar funções em Alvalade, no dia 10 de novembro. Estar no banco contra o Estrela da Amadora, na abertura da décima jornada do campeonato, foi, apesar de tudo, um ato de solidão por muito que todos os olhos estivessem apontados a si.
Sentiu-se um Rúben Amorim desacompanhado. Seríamos até capazes de jurar que a própria sombra se afastou. Se calhar, foi só andando para Inglaterra ao encontro dos pensamentos de Amorim. Afinal, o corpo e a sombra podem ser como o relâmpago e o trovão, viajarem a velocidades diferentes.
(26’- ok... Danilo ia jurar que viu a baliza uns metros acima da posição real e incorreu num desperdício clamoroso; 29’- Alguém que entregue o Óscar de pior ator do mundo a Nilton Varela ou então um “Megulhador de Ouro”; 31’- Ele outra vez? Bomba e bis de Gyökeres; 35’- Rodrigo Pinho reduziu de cabeça, o Estrela estava a beneficiar de anormais facilidades para chegar ao ataque; 37’- duas belíssimas defesas de Bruno Brígido não mereciam que Danilo Veiga cometesse penálti; 42’- Gyökeres não sabe mesmo andar nisto a brincar... hat-trick ainda antes do intervalo)
Enquanto Amorim não se reagrupa com a parte dele que já partiu para outras paragens, viu-se forçado a ser julgado no estádio que lhe serviu de casa nos últimos quase cinco anos. A porção de adeptos dos leões que assistiu ao vivo ao jogo com o Estrela, ilibou o técnico em relação ao momento que escolheu para sair do clube. O votómetro dos aplausos decretou maioria absoluta de compreensão. Mesmo que não faltem insatisfeitos, calados permaneceram.
Rúben Amorim dirigiu-se ao banco, pegou numa garrafa de água e distribuiu outra e ignorou as palmas. Não as agradeceu mais do que o habitual nem delas usufruiu. Limitou-se a existir junto delas para não se deixar perturbar pelo motivo pelo qual a sinfonia ocorrera. Talvez não fosse arrogância, mas antes vontade de não querer contribuir para as exéquias do seu reinado em Alvalade.
(52’- olhem quem é ele... Nani regressou a Alvalade e foi aplaudido de pé quando entrou; 57’- Rodrigo Pinho marcou de novo, mas tocou a bola com a mão e o golo acabou anulado; 70’- alguém devia tentar perceber se Gyökeres está bem, o sueco está a demonstrar demasiado apetite, só quer mais e mais; 70’- apercebemo-nos que Gyökeres marcou o quartro golo no jogo)
No fundo, o ainda treinador do Sporting sabia que era a razão de se cantar mais baixo do que o costume nas bancadas e de, em certos momentos, se ouvir apenas o megafone das claques. Um estádio em processo de aceitação, com dificuldades de digestão e a engolir em seco as perspetivas de um futuro incerto. “Zero ídolos”, disse uma tarja na bancada. De facto, foi uma noite para dar mais valor aos que ficam do que aos que partem.
(80’- há uma quantidade anormal de fumo no ar; 84’- a visão de Marcus Edwards deve ter sido perturbada, caso contrário não teria falhado o desvio ao segundo poste; 85’- finalmente as correrias de Maxi Araújo chegaram à meta e o uruguaio estreou-se a marcar com a camisola verde e branca; 90+2’- silvo final do árbitro)
O rastilho do adeus de Rúben Amorim ao Sporting começou a arder. Só voltará a jogar em Alvalade na próxima terça-feira, quando os leões enfrentarem o Manchester City para a Liga dos Campeões. Depois, despede-se em definitivo, no Minho, contra o Sp. Braga, clube que deixou quando foi seduzido pela desordem verde e branca. A devastação com que se encontrará no Manchester United, o 14.º classificado da Premier League, é uma outra prova de amor feita ao caos.
Mas tivemos que falar deste assunto baixinho, porque nos entretantos houve um jogo a decorrer.