Na altitude da Cidade do México e no alto do pódio, Tommie Smith baixou a cabeça, ergueu o braço direito e cerrou o punho adornado por uma luva preta. No seu costado, John Carlos, outro norte-americano, espelha os gestos, esticando o braço esquerdo e fechando o punho também agasalhado por uma luva. Tocava o hino dos EUA e ambos estavam descalços, imóveis, estátuas petrificadas num gesto que os eternizou: em 1968, no pódio dos 200 metros dos Jogos Olímpicos, protestaram contra a violência e opressão raciais no seu país luzindo lá bem no alto, para o mundo ver, o cumprimento do movimento Black Power, sustido por pés sem sapatilhas que representavam a pobreza da população afro-americana.
Ao seu lado, hirto e de pose protocolar, estava Peter Norman.
O australiano, agraciado com a medalha de prata, acabara de ser o segundo homem mais rápido da história a correr os 200 metros, inclusive batendo o recorde olímpico durante as qualificações. Acresceu aos 20.06 segundos que deixou nos mais de 2.000 metros a que se ergue a capital mexicana a coincidência de estar no pódio que eternizou um dos momentos mais icónicos da vida dos Jogos, quando dois atletas negros, esquecendo a celebração dos seus louros, cravaram no palco desportivo uma mensagem política num período em que o ativismo social contra o racismo nos EUA estava em ebulição.
Peter Norman fora absurdamente rápido, tão veloz que a sua marca durava há 56 anos. Com tal revestimento histórico, o seu recorde era muito estimado, além de ser o mais antigo do atletismo australiano, mas, em Brisbane, um rapaz que ainda pergunta ao corpo quanto potencial tem guardado nos seus músculos tratou de o pulverizar, como se nada fosse, a correr entre adolescentes.
Com vento favorável e o sol a queimar a pista azul dos All Schools Athletics Championships, uma prova para atletas do ensino secundário da Austrália, a final dos 200 metros foi vencida por Gout Gout, que demorou 20.04 segundos a completar a distância. É impossível descrever a corrida em contornos competitivos: ao alcançar a meta, o delgado jovem não tinha um adversário à vista, todos até longe para saborearem o pó levantado pelas suas sapatilhas. Por dois centésimos de segundo caiu, no sábado, o recorde de Peter Norman - no meio de rapazes do liceu.
A marca fixada no cronómetro escavou, de imediato, na arqueologia do atletismo. “Isto são tempos de adulto e eu, que sou apenas um miúdo, estou a corrê-los”, congratulou-se o extasiado Gout Gout, após posar ao lado do relógio oficial da competição. Peter Norman era um adulto, tinha 24 anos quando fixou o recorde nos Jogos Olímpicos do México. Mas a locomotiva das comparações, frenética na sua descura por travões, apressou-se a colocar o adolescente australiano ao lado do que outro nome conseguiu antes de ser um homem feito.
Os 20.04 segundos de Gout Gout superaram os 20.13 que o lendário Usain Bolt correu com a sua idade. E cedo a locomotiva virou um bullet train, rápido a chegar à estação cheio de perguntas a respeito deste feito. “Tenho recebido essa pressão. Mas para mim, vocês sabem o que se costuma dizer, a pressão faz diamantes e creio que sou melhor do que um diamante neste momento”, reagiu pomposamente o rapaz, sem atrapalhações perante as câmaras, cheio de uma confiança também reminiscente de algo parecido ao que era emanado pelo melhor velocista de sempre.
“Ele é parecido comigo”
Não é a única parecença com o jamaicano. Na final dos All Schools Athletics Championships australiano, destinado a atletas sub-18, Gout Gout teve um arranque pouco reativo, perdendo logo tempo para os adversários, como era habitual notar-se em Usain Bolt. Não liderava a corrida na curva para a entrada dos derradeiros 100 metros, mas, à entrada para a reta, quando o cansaço tomava o fôlego dos adversários, Gout parecia ganhar energias: nesse troço, zarpou para longe dos outros, acabando com uns bons cinco metros de vantagem para o segundo classificado. E a perna-longa que lhe confere uma passada larga, sincopada num estilo de corrida em que leva o tronco direito e reto, fizeram lembrar alguém.
Ultrapassada a meta, deu meia-volta e desacelerou a correr de costas, como que à espera dos adversários, que acorreram a abraçá-lo. Deixou-se à mercê de fotografias fazendo uma moldura com as mãos sobre o dorsal com o seu nome; pegou nas sapatilhas e posou com elas coladas às orelhas, fletindo os músculos; ainda usou uma delas, depois, para fingir que se tratava de um telefone. Em Gout Gout parece estar a personalidade excêntrica, ao menos extrovertida, para dar vazão ao rápido comboio das expectativas que agora não o deixará sossegado. “É de loucos, nem o consigo processar”, disse, ainda na pista. “Mas, honestamente, agora é dar pequenos passos… e perseguir as marcas sub.”
Ele referiu-se a correr os 100 e os 200 metros, respetivamente, em menos de 10 e 20 segundos. Na primeira distância é muito rápido, mas não tanto quanto na segunda, tal e qual Bolt, que no seu tempo tratou de desmanchar o seu tempo adolescente: quando já tinha 17 anos, completou os 200 metros em 19.33 segundos, outra marca extraordinária. Os 20.04s que Gout Gout agora fixou já lhe chegariam para ter sido 6.º classificado na final dos últimos Jogos Olímpicos, em Paris, contrapondo o feito sem cura pelos fatores imponderáveis como é hábito nas comparações precipitadas - assumindo que o australiano estaria em forma, com vento favorável, a partir nas pistas onde a convivência dos corpos causa menos atrito e por aí fora. Nos 100 metros, o seu melhor é 10.04 segundos.
Há pouco tempo, em resposta à partilha de um vídeo de Gout Gout pela Jumpers World, uma conta de Instagram dedicada ao atletismo, Usain Bolt deu-se ao trabalho de escrever: “Ele é parecido comigo.” No início dos anos 2000, o jamaicano irrompeu com estrondo e, sacudidas as dificuldades de adaptação quando entrou nos seus vintes - nem se qualificou, por exemplo, para os Jogos de Atenas, em 2004 -, tornou-se na cara do atletismo.
A repetição de um nome errado
Desde então, órfão de ícones abrasivos na visibilidade que davam à modalidade pela sua personalidade, o atletismo tem andado à caça da sua próxima referência. Em Paris ganhou, em definitivo, a popularidade de ‘Mondo’ Duplantis no salto com vara. Ainda lhe falta quem assuma os holofotes na velocidade, nas provas que mais atraem interesse.
Os anseios por grandeza vindos de fora já circundarão Gout Gout, nascido em 2007, um dos sete filhos de um casal de sudaneses fugido da guerra no seu país. Veio ao mundo em Brisbane, onde os pais se fixaram algo fora dos planos: fugidos, primeiro, para o Egito, davam prioridade ao asilo requerido ao Canadá, mas, explicou o pai à televisão “7News”, a Austrália foi mais rápida a responder-lhes e a fazer-lhes chegar os documentos.
Nas confidências veio outra novidade, esta parecida a um desgosto. O progenitor contou também que o nome do filho não se pronuncia como os australianos o dizem - ‘Gáut’ -, sim ‘Gwot’, como se diria caso no seu cartão de identidade se lesse “Guot”. Era o suposto, só que perdeu-se na tradução do árabe quando as autoridades egípcias registaram oficialmente o apelido da família. “Quando ouço pessoas a chamarem-lhe Gout não fico muito feliz por ele”, lamentou o pai.
O patriarca não quer o filho a ser tratado com “o nome de uma doença”. Em inglês, Gout significa Gota, um problema de saúde causado pela mescla de condições genéticas e fatores de dieta que provoca ataques de inflamação nas articulações, por norma nos pés. Para o progenitor do recordista australiano dos 200 metros, “não é aceitável” chamarem-lhe isso. Muito menos de forma repetida. Talvez seja tarde demais para abrandar o empolgamento.
Em 2032, a Brisbane onde Gout Gout nasceu vai acolher os Jogos Olímpicos. O adolescente aí será um adulto de 24 anos, sabe-se lá em que estado físico, se escapado a mazelas e com que tempos, medalhas ou feitos no baú. Se pulássemos já para a carruagem das expetativas desmesuradas, daria para antever um previsível fenómeno se os Jogos de Brisbane lhe derem ouro - o seu nome repetido será, tão rápido quanto ele, transformado em ‘Goat Goat’ pelos australianos.