Há sempre um português pronto a conquistar o mundo - ou, se não há, parece mesmo que assim o é. Na antecâmara do duelo entre Bayern Munchen e Benfica, para a Liga dos Campeões, o zerozero falou com mais um luso que desbrava caminho pela Baviera e com muita responsabilidade.

Francisco de Sá Fardilha pode ser quase considerado como um bon vivant do futebol. Depois de uma licenciatura em Jornalismo tirado na Faculdade de Letras da Universidade do Porto ainda em 2008, a vida encarregou-se de o levar para outros voos (de forma quase literal).

Muito ligado ao futsal desde novo, o desporto sempre esteve ligado àquele que, agora, é o diretor técnico da equipa feminina do Bayern Munchen. Depois de um mestrado em Treino Desportivo na Escócia e ainda um doutoramento, as portas foram abertas para o mundo do futebol. Luís Campos levou-o para diretor da formação do Lille e, posteriormente, passou pelo Bordeaux.

Aos 37 anos, Francisco de Sá Fardilha é o português que lidera o projeto da maior equipa feminina da Baviera que luta pela glória na Alemanha, mas, também, na Liga dos Campeões e falou com o zerozero.

«Estarei sempre grato ao Luís Campos por me ter aberto a porta»

zerozero: O Francisco chegou ao Bayern há praticamente dois anos. Como é que tem sido esta nova experiência na carreira?

@Bayern
Francisco de Sá Fardilha: Tem sido uma ótima experiência, com tudo aquilo que é associado não só ao desenvolvimento do futebol feminino - que tem sido exponencial nos últimos anos -, mas também poder viver por dentro de um dos maiores clubes do mundo e que acaba por conseguir juntar, digamos, o facto de ser uma marca global presente em todos os cantos do mundo e ao mesmo tempo continuar a ter um sentimento de verdadeira família. Todos os dias, as pessoas almoçam juntas no mesmo sítio, um sítio onde não há demasiadas formalidades e onde toda a gente rema para o mesmo lado - o que às vezes é raro no futebol.

zz: Como é que iniciou esta carreira no futebol, mais propriamente nesta função que hoje tem? Porque, segundo aquilo que nós sabemos, o Francisco tem uma licenciatura em Jornalismo, feita ainda em Portugal.

FSF: Sim, há muitos anos. Acabei a licenciatura em 2008. Já lá vão uns bons anos, mas estive sempre ligado ao desporto, ainda que, na altura, como um hobby muito sério no futsal. Estive mais de dez anos ligado ao futsal. E, depois, num certo momento da minha vida, acabei por querer, digamos, passar para o outro lado. Antes, estava a contar a história dos outros, de certa forma, e acabei por querer viver as histórias pelo lado de dentro.

qUma das pessoas que foi minha mentora na parte do treino é a Marisa Gomes. É uma pessoa com quem eu tenho uma relação muito boa e que muito me ajudou
Francisco de Sá Fardilha

Fui para a Escócia tirar o mestrado e, depois, o doutoramento. E, aí, acabei por conhecer o Luís Campos, o atual diretor desportivo do Paris Saint-Germain, que acabou por me convidar para as funções de diretor adjunto da formação do Lille. Entrei assim. Não tenho nenhuma carreira como antigo jogador. Foi uma oportunidade que apareceu. Há um grande elemento de sorte e que, felizmente, apareceu. Em todas as entrevistas digo que estarei sempre grato ao Luís Campos por me ter aberto a porta, porque sei que há muita gente que tem competência, muita gente que tem o sonho de estar no mundo do futebol profissional, e sei que muitas vezes não é fácil.

zz: E porquê uma carreira que virada diretamente ligada ao futebol feminino? Simplesmente surgiu ou já havia uma ideia de que era algo que poderia vir a ser possível?

FSF: Eu acompanho o futebol feminino já há bastante tempo. Uma das pessoas que foi minha mentora na parte do treino é a Marisa Gomes, que, hoje em dia, é selecionadora sub-19 de Portugal. É uma pessoa com quem tenho uma relação muito boa e que muito me ajudou. E por, de certa forma, pela amizade que nos une, fui sempre acompanhando o trabalho dela. Lembro-me sempre de uma qualificação para um Campeonato Europeu jogada na Figueira da Foz - que é uma das memórias que eu guardo - e, a partir daí, fui sempre acompanhando o futebol feminino e o desenvolvimento. Quer seja feminino ou masculino, estamos a falar de futebol, mas a verdade é há diferenças em termos do espírito com que é levado.

O futebol feminino é algo que a nível, se calhar, ético e a nível da autenticidade com que eu me identifico bastante e também, apesar de haver esse elemento de coincidência, é uma decisão consciente da minha parte. De não querer continuar no futebol masculino e querer fazer uma carreira no futebol feminino. Isto tudo porque acredito e, de certa forma, quero dedicar toda a minha energia e todo o meu tempo a ajudar a desenvolver o fenómeno do futebol feminino que, nesta altura, me dá muito gosto.

zz: Como surge o Bayern, depois dessa experiência no Lille, mas também depois da última passagem pelo Bordeaux?

FSF: Falávamos de sorte e coincidências. Tem tudo a ver com o facto de termos feito uma transferência de uma jogadora - a Tainara, jogadora brasileira, que estava no Bordeaux. Fiz uma proposta do Bayern. As negociações correram de uma forma muito transparente e muito positiva. As três partes conseguiram aquilo que queriam e acho que ficou uma boa relação com a Bianca Reich, que é, nesta altura, a minha chefe. Ela contactou-me uns meses mais tarde, sabendo da situação também complicada que passava no Bordeaux, para dizer que haveria a chefe da altura se iria reformar. Ela ia ficar com o cargo dela e gostaria de me ter como braço direito para avançar este projeto da equipa feminina do Bayern.

«Não queremos pôr em causa a estabilidade do nosso projeto para ter um troféu na vitrine»

zz: Para além da Escócia e de França, já alguma vez tinha passado algum período na Alemanha, antes de representar o Bayern?

FSF: Tinha estado um período de sete ou oito meses durante o meu doutoramento, mas a Alemanha de Leste não tem nada a ver com a Baviera, que é onde estou agora. No entanto, profissionalmente, é a primeira experiência que eu tenho na Alemanha.

zz: E que diferenças é que acabou por encontrar agora na Baviera, nesta nova realidade do futebol feminino, comparada àqueles países onde já trabalhou e até em Portugal?

FSF: Sinceramente, nunca fiz esse exercício de comparação. (risos) O que posso dizer é que o Bayern é realmente um clube à parte também pela filosofia. Não ter dívidas é um ponto de honra. Dizemos sempre internamente que, possivelmente, poderíamos ir mais rápido quando falamos em competir, mesmo pela Women's Champions League. Às vezes, quando falava da evolução do futebol feminino, há evoluções demasiado rápidas e nós não queremos, de certa forma, pôr em causa a estabilidade do nosso projeto e o nosso desenvolvimento a longo prazo para ter um troféu na vitrine. Isso é algo que é muito marcado aqui.

Noutros clubes, há, muitas vezes, uma pressão de ganhar no momento e fazer investimentos que não são sustentáveis para tentar, a todo custo, conseguir troféus. Aqui não é o caso. Aqui há muito esta ideia do longo prazo. De ganhar troféus, sim, mas de garantir sempre a estabilidade do projeto e do clube.

Existe esse pensar nas pessoas que virão depois de nós. E, ao mesmo tempo, é um clube que combina de uma forma muito interessante a aposta na sua identidade local. A própria frase que define o clube, o Mia San Mia - Somos quem somos - remete-nos sempre para isso: para manter a identidade e ter orgulho. Basta ver, todos os anos, a celebração do Oktoberfest e também a celebração na varanda da Câmara Municipal em Marienplatz quando se ganham os títulos.

Há uma verdadeira comunhão com a região e com a cidade. É algo muito especial. E também falamos do clube com o maior número de sócios pagantes do mundo que tem toda esta vertente global, mas, ao mesmo tempo, consegue manter-se com uma identidade muito local. Acho que é algo muito especial e que me faz ter muito orgulho de aqui estar.

zz: Dentro dessa realidade - que é tão grande -, qual é o papel mais importante que o Francisco tem? Ou seja, como acaba por se desenrolar o seu papel dentro do Bayern?

FSF: As coisas são sempre bastante claras. A minha missão aqui é muito clara. Por um lado, o meu papel baseia-se em todo o recrutamento quer de jogadoras, quer de staff para a equipa profissional e para a equipa sub-20 que joga na Segunda Divisão. De certa forma, sou responsável não só pelo curto prazo, mas também pelo longo prazo. Temos ido buscar jogadoras jovens já com essa perspectiva de uma renovação a médio prazo do plantel profissional.

Na equipa principal, acabo por estar envolvido naquilo a que chamamos de melhorias da performance, ou seja, tentar avaliar todas as áreas relacionadas com a performance e perceber onde é que nós podemos melhorar. Seja em termos de número de staff, seja em termos de novas áreas ligadas à inovação, nutrição, seja ao que for. A minha função passa muito por analisar as nossas necessidades e fazer recomendações para que sejam supridas. Depois, tenho também a parte estratégica da formação. Estou muito presente, mas não tenho funções operacionais no dia-a-dia. No entanto, sou eu que sou responsável por todo o desenvolvimento da estratégia e da metodologia da formação e tenho pessoas que trabalham comigo, que são responsáveis por operacionalizar essa estratégia.

«O investimento é de um ato de racionalidade dos gestores do futebol europeu»

zz: O Bayern já é bicampeão, caminha agora para a tentativa do tricampeonato, num país em que o Wolfsburg também sempre foi um dos grandes clubes. Quais são os principais objetivos a nível interno, mas também na Liga dos Campeões para o clube?

FSF: Nós dizemos sempre - e não é exagerado, nem é brincar porque eu já era assim como treinador - que o nosso objetivo é ganhar o próximo jogo. Com o nosso treinador, Alexander Strauss, falamos sempre de processo. Os títulos acabam por ser uma consequência do nosso trabalho, mas nós não podemos controlar o investimento que nossos adversários fazem. Há muitas coisas que nós não podemos controlar e, por isso, nós dizemos sempre que o nosso objetivo é ganhar o próximo jogo. Esta é a terceira temporada que eu passo aqui. Felizmente, as últimas correram bem, mas tem sido sempre com esta mentalidade.

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A verdade é que, o ano passado, a Liga dos Campeões, se calhar, foi levada com alguma leveza. E ficou bastante claro que a Liga dos Campeões está diferente, que os clubes por toda a Europa estão a investir e estão a melhorar. Se pusermos objetivos, claro que a prioridade é o campeonato. É sempre o campeonato. Temos uma Taça da Alemanha que também gostaríamos de ganhar depois de muitos anos sem o fazer. Já o ano passado termos chegado à final foi algo raro na última década. Este ano, gostaríamos de dar o passo seguinte.

E, na Liga dos Campeões, as coisas estão bastante bem encaminhadas, com duas vitórias em dois jogos. Mas é continuar com o pé no acelerador. Falamos do Wolfsburg, mas a verdade é que o Eintracht Frankfurt está bastante forte esta temporada. E o facto de ter sido eliminado bastante cedo da Liga dos Campeões faz com que, comparativamente connosco e com o Wolfsburg, ajuda a ter bastante mais dias de recuperação e tempo para preparar os jogos.

Apesar de muitas vezes olharmos para os resultados finais, e este ano temos marcado bastante mais golos que nos anos anteriores, a verdade é que na Liga Alemã, os jogos são sempre equilibrados e não raras vezes já nos vimos em desvantagem. No último jogo, ganhámos aos 90 minutos. Mas, para sumarizar, o nosso objetivo é continuar a desenvolver o nosso processo. É a terceira época e vemos uma equipa com bastante maior maturidade do que nos outros anos. Temos de continuar a desenvolver esse processo.

zz: O Francisco mencionou a questão do investimento das outras equipas e que já se nota muita diferença em relação ao antigamente. Como é que vê este crescimento do futebol feminino na Europa nos últimos anos?

FSF: Com muito bons olhos e, de certa forma, também como uma inevitabilidade. Acho que os clubes a nível europeu já perceberam que o futebol feminino não é uma questão de marketing ou de responsabilidade social. É algo que é para ser levado a sério, é algo que traz milhares e cada vez mais pessoas aos estádios. Quando as condições são dadas, as meninas e as mulheres são capazes de de produzir performances de grande qualidade e esteticamente muito interessantes em termos de futebol jogado. Acho que a nossa equipa é um excelente exemplo disso e como o próprio Barcelona também.

Acho que esse investimento é de um ato de racionalidade dos gestores do futebol europeu. Ainda há dois dias se falava dos direitos televisivos da Inglaterra que batem recordes. Nos Estados Unidos, aconteceu o mesmo. Na Alemanha, brevemente, estou seguro de que acontecerá o mesmo. E acho que é um desenvolvimento inevitável.

Hoje em dia, já não é como vivi no início: o favorzinho que os clubes fazem de ter um pequeno orçamento para o futebol feminino. Já é levado a sério. É por isso que me dá muito prazer poder vivenciar e testemunhar essa evolução. E, mesmo dentro do nosso clube, o futebol feminino é levado a sério já há muitos, muitos anos. Estamos a falar de uma secção com 54 anos de existência. Vê-se realmente que há um aumento muito significativo do investimento nos últimos anos, não só em termos de jogadoras e a qualidade das mesmas, mas também em todo o staff de apoio, todos os recursos que são postos à disposição em comunhão com a equipa profissional masculina.