Alentejo, Alentejo, vastidão de Portugal... É a maior região do país, mas essa dimensão, por vezes caricaturada em silenciosas e douradas planícies, não tem gerado sucesso à escala nacional no desporto - e em tantas outras áreas, diga-se.

É um lugar onde a ambição é muitas vezes travada pela patente serenidade e ainda mais pela minguante densidade populacional. Ainda assim, contra as probabilidades e a história recente, está duplamente representado nos oitavos de final da Taça de Portugal, coisa que só há 80 anos tinha acontecido.

Enquanto O Elvas e o Lusitano de Évora aliam a preparação de duelos contra gigantes minhotos à luta pela subida no CP, dignificando o seu património com projetos reais, o zerozero apanhou a boleia da Prova Rainha para destacar o futebol alentejano através dos seus dois melhores representantes. Venha connosco.

O Elvas que já ganhou

À medida que caminha pelo recém-renovado relvado do seu clube, Vincenzo Caci, presidente d'O Elvas, deixa um pedido que bem resume o espírito de uma equipa de escalões inferiores que prepara um jogo de Taça de Portugal. «Eu vou dizer uma frase, mas por favor escreve-a bem», começa, em videochamada com o nosso jornal. «Nós já ganhámos!»

Suíço de 62 anos é o dirigente do clube @O Elvas
Não se refere ao resultado da partida, pois claro. Vincenzo, que em 2023 rumou ao Alentejo para agarrar uma oportunidade de gestão sugerida pelo filho Lorenzo, sabe bem das qualidades do adversário que terá pela frente - não o tivesse visto a ganhar por 1-4 na visita ao St. Gallen, da sua Suíça -, mas sabe que são ocasiões que devem ser vividas com um sorriso.

«Para nós é uma honra receber um clube como o Vitória, que admiramos, mas já ganhámos por estar a competir nesta fase da Taça e vamos receber o nosso adversário com carinho e hospitalidade. Depois, que se jogue o futebol, são onze contra onze», diz, numa postura que foi corroborada por Gonçalo Piçarra, o diretor-desportivo:

«O simbolismo do dia não está no Vitória, podia até ser um Rebordosa. Importa sim o nosso regresso a casa e a esta boa campanha na Taça de Portugal. Tenho dito, a brincar, que quando o árbitro apitar para o início já podemos ir embora, porque o nosso trabalho está feito e estamos felizes.»

Em Elvas, o ponto focal é mesmo esse regresso a casa e a casa é o Patalino. Ou, para que sejamos verdadeiramente esclarecedores, o Campo Domingos Carrilho Patalino, estádio que esteve fechado para renovações mas que este sábado vai voltar a ser palco para a festa do futebol. Essa renovação é, também, ilustrativa do trabalho que O Elvas, primeiro classificado da Série C do Campeonato de Portugal, tem feito para se reerguer.

O Elvas eliminou Marco 09, Torreense e Varzim @O Elvas
«Este é um projeto a longo prazo, mas tem dado imediatamente resultados bons porque aqui em Elvas temos um ADN impressionante e muito particular. É o motivo que nos levou a vir da Suíça para investir no clube», atira Vincenzo Caci, que vai pedindo palavras emprestadas ao espanhol e ao inglês para complementar o seu (bom!) português. Dessas, várias são elogios direcionados ao plantel e a um treinador - Pedro Hipólito - que pela capacidade de treino e pelas qualidades humanas «merece treinar uma equipa de Primeira Liga».

Tendo perdido apenas um jogo na atual temporada, e com tamanha positividade em torno da cidade e da equipa, é difícil imaginar que a tarefa do Vitória SC na visita ao Alentejo seja tão fácil como muitos tendem a prever...

Lusitano, pesadelo primodivisionário

O SC Braga é outra formação minhota que não vai encontrar facilidades nestes oitavos de final da Taça de Portugal, sendo que o aviso dos gverreiros está patente na árvore do torneio. Para chegar até aqui o Lusitano de Évora surpreendeu três vezes, eliminando uma equipa do segundo escalão e duas do primeiro. Um verdadeiro tomba-gigantes!

Treinador de 40 anos esteve três temporadas no rival, Juventude de Évora @Lusitano Ginásio Clube
«Tínhamos menos chances de passar, mas encarámos esses jogos de percentagem reduzida com vontade de os desfrutar», começa Pedro Russiano, treinador, em entrevista ao zerozero. «Contra o Académico disseram que não íamos passar. Depois com o Estoril sabíamos que seria difícil, mas passámos. Com o AFS foi o primeiro jogo do Daniel Ramos e por isso os jogadores deles vinham muito motivados, mas passámos!»

«O pensamento de desfrutar do jogo é o que nos tem levado longe e agora com o SC Braga, que tem muita qualidade e é um dos candidatos, voltamos a agarrar-nos a essas pequenas probabilidades», completa, sabendo que, aconteça o que acontecer, o dever já foi cumprido nesta competição.

Tal como a outra equipa alentejana já aqui referida, também o Lusitano perdeu apenas uma vez na temporada e lidera a sua série do Campeonato de Portugal. O técnico diz que «tem tudo corrido na perfeição», mas justifica essa sorte com o trabalho da direção, dos jogadores e da sua equipa técnica. Na Taça a campanha já é histórica, mas pode ganhar contornos ainda mais brilhantes, sendo que se segue o SC Braga e há outro grande no caminho.

«Não sei se alguma vez aconteceu, mas acreditamos que podemos continuar. Nós agora sabemos que na ronda seguinte podemos encontrar o Benfica [ou o Farense] e a confiança dos jogadores ficou muito grande. É um grande elemento de motivação, mas jogar estes oitavos, num estádio enorme e transmitido na TV, é um grande orgulho para a cidade de Évora. Sentimo-nos de volta ao panorama principal do futebol português.»

Os desafios do futebol alentejano

Seria irresponsável partilhar a história destes sucessos alentejanos sem descrever as dificuldades que os tentaram abrandar, pois a maior parte dos clubes da região não mostraram a mesma capacidade para ultrapassar esses desafios.

O Elvas não chegava aos oitavos de final da Taça de Portugal desde 1988/89, enquanto o Lusitano de Évora não atingia esta fase desde 1961/62
Ano após ano vemos equipas das Associações de Futebol de Portalegre, Beja e Évora a conquistar a subida ao CP em campo, mas a rejeitá-la por falta das condições necessárias para competir acima da distrital. As vagas acabam por cair, na maior parte dos casos, para as Associações dos distritos de maior densidade populacional e isso não é uma coincidência.

Lusitano foi fundado em 1911 @Lusitano Ginásio Clube
Antes de enumerar as dificuldades em si, Gonçalo Piçarra expressou na perfeição o sentimento de liderar um projeto nesta região. «Todos os dias temos uma erva a crescer, ela pode ser boa ou pode ser má», diz-nos. «Orgulhamo-nos de fazer parte desta região que tem muito potencial mas que está muito esquecida a nível económico, desportivo e de recursos humanos.»

«Um dos maiores desafios que temos no Alentejo é encontrar profissionais de áreas específicas. Um projeto como este precisa, por exemplo, de um web designer e isso é algo que se consegue facilmente em Lisboa, mas aqui não é o mesmo. É esse o tendão de aquiles desta região, mas acaba por ser um desafio», atirou, com o apoio de Vincenzo Caci: «É muito complicado, mas damos as boas-vindas a quem quiser trabalhar nesta região maravilhosa.»

Bem ciente do que é o futebol alentejano por estar na sua quarta temporada consecutiva em Évora, Pedro Russiano também falou do tema. As ideias foram em parte diferentes, por serem do ponto de vista de um treinador e não de um dirigente, mas a chave continuou a estar nos recursos humanos:

qDamos as boas-vindas a quem quiser trabalhar nesta região maravilhosa
«Os jogadores não têm emergido no futebol sénior aqui no interior, por isso acaba por ter de sobrar para o recrutamento, e nós aqui temos de ter maior orçamento do que as equipas que estão mais perto dos grandes centros. Temos maiores dificuldades em conseguir bons jogadores e muitas vezes temos de lhes garantir casas e coisas que são difíceis, mas temos evoluído nisso.»

«Na parte da formação, os clubes do Alentejo estão a tentar melhorar as suas condições para formar mais e melhores jogadores para suportar o futebol sénior, mas eu acredito que isso ainda vai levar muito tempo. Até lá, temos de fazer um maior esforço financeiro para nos equipararmos às equipas do interior», completa o técnico do Lusitano.

Construir as bases, sem atalhos

Em projetos como o d'O Elvas e do Lusitano de Évora, todas as pedras do caminho são aproveitadas para construir as bases do sucesso. Em ambos os casos, o trabalho feito nas infraestruturas é uma prova do compromisso com um futuro que pode muito bem passar por um regresso ao topo do futebol nacional.

Gonçalo Piçarra à esquerda, Vincenzo Caci à direita @O Elvas
«Isto não é um projeto em que se compra um jogador e depois vende-se para outro clube por lucro, como tantas vezes acontece. Aqui a essência está na construção de infraestruturas que suportem o futebol de formação e que possam a médio/longo prazo abastecer a equipa principal. Se não houver uma base forte e bem estabelecida, nunca poderemos pensar em comprar jogadores», explica o diretor-desportivo dos cavaleiros, Gonçalo Piçarra, ao zerozero.

«Vamos trilhar o caminho domingo a domingo, mas queremos que o clube consiga criar uma base satisfatória e temos as ideias bem definidas para no espaço de cinco anos chegarmos à II Liga de forma estável, para depois sim atacar a subida à Primeira Liga», remata.

Se em Elvas veremos a estreia do novo relvado do Patalino, cujas instalações também «mereciam ser reestruturadas como estamos a reestruturar», diz-nos Vincenzo Caci, no caso do Lusitano de Évora temos uma iminente transição do velhinho Campo Estrela para a nova casa, no final da atual temporada. São passos difíceis, mas levam a direção certa.

Campo Estrela (na foto) será abandonado no final da temporada, enquanto o Patalino está em obras de requalificação @Lusitano Ginásio Clube
«O objetivo é voltar aos campeonatos profissionais o mais rapidamente possível. Queremos acompanhar a evolução da estrutura do clube e isso só podemos fazer com a subida de divisão. O clube neste momento tem uma academia com dois sintéticos e um relvado natural que será o nosso futuro estádio e onde já se estão a erguer bancadas. Este é o último ano no nosso estádio e é também por isso que temos muito orgulho da nossa participação na Taça, é uma boa despedida», diz-nos Russiano, que tem feito a sua parte para levar os eborenses à Liga 3.

Talvez a falta de pressa que é tão associada ao Alentejo seja um fator determinante. Nenhum destes projetos procura atalhos, preferindo o intemporal ao efémero numa escolha que, intencionalmente ou não, condiz tão bem com a cultura da região. Não há garantias de sucesso, mas há, para já, oitavos de final da Taça de Portugal...