9h30. Saio de casa afogueado. Já devia lá estar. Bato a porta, desço no elevador. No instante em que ponho os pés na rua, desata a chover. Corro para o carro. Não tenho chave. Molho-me mais. Volto para trás. Agora sim, chave no bolso, abro o automóvel, entro, sento-me, bato a porta. Levo as mãos ao pescoço – falta o cachecol. Repito tudo.

O que leva um homem adulto a abandonar os filhos num Sábado de manhã? Para onde vai ele? Que força é essa que o arranca do lar? No dia em que a sua mulher faz anos? A resposta é simples e irrefutável: o Benfica tem uma Assembleia Geral Extraordinária.

9h35. Segunda Circular, limpa-pára-brisas no máximo, camiões a cuspir água suja, carros a travar sem mais nem menos, e eu a ver os minutos a escorrer pelo vidro. Preciso de chegar à hora. Quero ouvir e ver cada detalhe. Assembleias são o coração do clube, o lugar onde o futebol ainda é sério, onde as coisas ainda podem ser decididas.

9h45. Não há lugar. Uma viatura com um vinil da Sport TV ocupa o único espaço vazio. Se não me tivesse esquecido da chave (e do cachecol), já estava a sair do carro. Estupores da Sport TV!

Vou tentar o parque. Milagre: há lugares, bastantes lugares. Páro e sigo para o pavilhão. Porta fechada. Chuva a dobrar e nada de Assembleia.

— A Assembleia é onde?
— O meu amigo foi descobrir. Acho que é do outro lado.

Era sim. No Pavilhão N.º2.

10h00. Não há fila, só chuva. Entro e está às moscas. Mesas, computadores, gente de colete fluorescente atrás dos monitores.

— Para votar, é só dirigir-se acolá.

Vou. Sinto-me numa espécie de nevoeiro. Onde está a Assembleia? Esperava discursos, calor, gente exaltada. Afinal, era só uma votação secreta e mais nada.

— Isto hoje é só deliberativo, não há intervenções — diz-me um funcionário.

Deliberativo. A palavra ecoa. Mas deliberar não é discutir, debater, considerar? Sinto-me num conto com o título: Já não percebo nada – ou a arte de confundir as pessoas dizendo palavras independentemente do seu significado.

Ah, bom. Está bem, então. É aí que se vota?

Que bela treta. Enfio os papéis na urna e saio, de regresso ao mundo dos mortais. A Catarina faz anos e o Benfica joga a alma numa Assembleia, mas eu estou no Continente do Colombo a comprar presunto, gelo e uma planta pequena para a casa de banho. A vida às vezes resume-se a isto. E o Benfica também.

Tinha o dia todo programado: uma odisseia entre a festa de anos e a Magna Reunião. Um dia de Homero, épico, heróico, errante. Um dia de mitologia pessoal. E agora nada.

Isto hoje é só deliberativo, não há intervenções.

A frase pairava na minha cabeça.

— Medidas de segurança por ser dia de bola — disse-me depois o meu cunhado que sabe sempre das evidências razoáveis que me escapam.

Pois.

Na festa, o meu amigo céptico lança a profecia:

Vais ver, vai ficar nos 72%.

São precisos 75% para passar e ele ainda vive o stress pós-traumático da Baía dos Porcos das eleições de 2020. Nunca mais se recompôs.

Suspiro. Pelo menos não falta gelo.

Sou temerário, claro. Nunca sei nada destas coisas. Chego aos sítios e as coisas já estão a acontecer. Aceito isso como um traço padronizado da realidade. Não me preocupa.

A tarde arrasta-se. A chuva transforma-se em granizo e tempestade. A festa segue seu rumo. “Deliberativo”...

18h00. Começa o jogo.
20h00. Acaba o jogo.

Da Assembleia, nada.

A festa terminou. Ficamos nós entre os despojos do sarau, a arrumar os copos e os pratos.

22h00.

Se calhar, é melhor ires — diz-me a Catarina.

O meu plano reformulado era ir ao Estádio ouvir os resultados. Abro o vídeo. Em directo no site, aquilo parece o Pólo Sul. Falta só ouvir o vento a assobiar.

Esquece. Não vale a pena.

00h25. Benfica TV.

Era o Dia da Mulher e ela tinha um nome: Raquel Vaz Pinto, chorando em estúdio e comovendo-me também. Do outro lado do painel, Jaime Antunes fazia contas de somar e diminuir e José Pereira da Costa, o Presidente da Mesa, inscrevia o seu nome na História ao dizer aqueles dois belos algarismos: “Noventa e um.” Por cento!

É a primeira vez que me lembro de ganhar numa votação importante.

Mas espera. Não ganhei.

Naquela neblina das 10 da manhã, nem sequer percebi que tinha um boletim e que tinha de marcar lá a minha cruz. Que grande estronço.

Mas que importa? Ganhou o Benfica. E é nosso. E há-de ser.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.