
Quando o Paris Saint-Germain decidiu, finalmente, entregar as rédeas do clube a um treinador de futebol (quem diria!), a Europa, por fim, cedeu aos milhões de euros investidos pelo fundo saudita. Mas temos de ser justos: o futebol europeu rendeu-se perante uma bela equipa de futebol, que comprou a ideia de um treinador que merecia voltar ao topo da Europa.
Campeão da Champions com o Barcelona, Luis Enrique sempre liderou equipas artísticas, que privilegiavam o lado poético do futebol. Mas poesia não é sempre garantia de troféu, muito pelo contrário. Luis Enrique liderou um grupo de jogadores que TRABALHAM.
Bem, antes de nos aprofundarmos na estratégia que foi a plataforma do campeão europeu, precisamos falar do óbvio. O primeiro ponto do trabalho do espanhol é a disciplina.
Já deve ter visto nas redes sociais, parte do documentário sobre o técnico espanhol, aquele momento em que Luis Enrique exige disciplina táctica de Mbappé e pede que o avançado ajude a equipa na fase defensiva para se tornar um «verdadeiro líder.»
«Pensas que só precisas de marcar golos. Claro, és um fenómeno, um jogador de topo. Mas para mim, isso só não basta. Um verdadeiro líder é aquele que, quando não pode ajudar com golos, como no outro dia, que tinhas dois jogadores de alto nível a marcar-te, ajuda na fase defensiva», disse Luis Enrique.
Mbappé nunca entregou isso em Paris. Mas na atual temporada, Luis Enrique teve jogadores com esse comprometimento. Mesmo que tivesse de os obrigar a tê-lo. Como fez com Dembélé, que chegou a ser afastado no início da temporada por indisciplina.
«Eu daria a Bola de Ouro ao Dembélé pela forma como defendeu. Isso é liderar uma equipa», comentou Luis Enrique após levantar a "Orelhuda".
A defesa foi a plataforma
Desde o trabalho com Mbappé, Luis Enrique já indicava que o grande ponto do seu trabalho em Paris seria defender com agressividade a partir do campo do adversário. Essa pressão alta foi fundamental no jogo decisivo contra o Internazionale (5-0), e também noutros momentos da temporada.
Vamos começar a análise do PSG, então, precisamente a partir da transição defensiva. Lembra-se como foi a saída de bola na final da Champions? O jogador do PSG responsável pelo primeiro toque na bola jogou para o lateral no campo defensivo do Inter. A escolha foi dar a bola ao rival numa zona perigosa e aplicar a pressão alta. Opção adotada em alguns outros jogos da temporada, inclusive na própria Champions.
As rotações posicionais, tão protagonistas quando o PSG tem a bola, aparecem também na fase defensiva. A pressão alta começa com o trio de ataque, com Dembélé geralmente a fechar a linha de passe entre o guarda-redes e o defesa mais próximo, enquanto Kvara e Doué (ou Barcola) apertam os outros homens quando é o caso de uma saída a três.

A partir daí, os encaixes de marcação são feitos com sintonia e sem posições fixas. João Neves, por exemplo, saltou na pressão para marcar Dimarco na ala, enquanto Doué fechava em Bastoni, o central. Fabián Ruíz controlava o corredor central com Vitinha, evitando que Çalhanoglu e Barella participassem no jogo. Hakimi ajudava Neves na pressão pela direita, Nuno Mendes cobria o corredor do outro lado com Vitinha ou Kvara. O importante não é que jogador está em que posição, mas sim se os encaixes de marcação são bem feitos e as coberturas são eficientes. Um subiu na pressão? Imediatamente um companheiro faz a cobertura.
O Inter acabou sufocado. Abusou do jogo direto com Bastoni a procurar Marcus Thuram e as jogadas não progrediram. O PSG amassou a equipa de Inzaghi, muito por conta da pressão alta e da disciplina tática de nomes como Dembélé.
Rotações posicionais: o segredo do campeão
A parte mais fascinante do trabalho de Luis Enrique em Paris é como funcionaram as rotações posicionais da equipa ao longo da temporada. Voltemos ao jogo contra o Inter como exemplo: no primeiro golo, o extremo direito apareceu na esquerda da área para receber um passe no meio interior e passou para o meio da área para o lateral direito (Hakimi) concluir. Dembélé, o avançado, estava na direita da área. Os jogadores não estavam nas suas posições de origem, estavam onde precisavam de estar.
As rotações nas posições acontecem também nos momentos sem a bola. Mas com a posse, o PSG é absolutamente imparável quando os movimentos são feitos em sintonia. Mas veja bem: posições que não são fixas não significam anarquia posicional para Luis Enrique, assim como não significava para a mítica Laranja Mecânica.
Vamos começar com a estrutura na saída de bola e, aí, vamos entender a lógica dos movimentos. Geralmente, o PSG começa na primeira fase de construção numa saída a três, com Vitinha a juntar-se aos defesas, ou mesmo Nuno Mendes ou Hakimi. Tudo depende da leitura de espaços no campo.

O PSG segue uma estrutura básica para a fase ofensiva: 2-3-5. Quanto mais a bola se move no campo de ataque, mais espaços se abrem. E aí os jogadores vão ocupando esses espaços. Um ataca um espaço, o outro avança para outro. E assim vai. Procuram sempre ter dois jogadores a dar largura no campo e abrindo os adversários e aproximações no corredor central.
Dembélé é protagonista nessas rotações: geralmente, recua até ao meio-campo para receber a bola e ajudar a criar jogadas com Vitinha e João Neves. Contra o Inter, por exemplo, havia pouco espaço no corredor central. Dembélé apareceu na meia direita, trocando de posições com Hakimi o tempo todo, e deixando Doué mais livre para entrar na área. Sim, Doué, que foi herói do jogo, com dois golos e uma assistência.

Essa liberdade posicional, com rotações constantes, também permite que os laterais parisienses, Nuno Mendes e Hakimi, apareçam na área nos momentos decisivos. Mendes participou diretamente em 12 golos na temporada, Hakimi em 20.
Desde a primeira fase de construção, o PSG é uma equipa imprevisível. A cada passo que dá em campo, torna-se ainda mais difícil de ser marcado. Se conseguir recuperar a bola já no campo inimigo, então... O Inter que o diga.
Claro que nem todos os jogos funcionam tão bem como em Munique. Mas, no geral, o trabalho de Luis Enrique fez do PSG a melhor equipa da Europa. Uma equipa de trabalhadores. Sem espaço para vedetas...