
O Boavista vê-se hoje numa situação muito semelhante àquela que o Belenenses viveu. O que pode partilhar da sua experiência com os dirigentes do clube do Bessa?
Embora a situação do ponto de vista jurídico não seja exatamente igual, aquilo que o Belenenses logrou fazer é irrepetível tendo em conta a última revisão da Lei das Sociedades Desportivas, a verdade é que do ponto de vista social, desportivo e comunicacional a situação tem semelhanças. A situação vivida atualmente pelo Boavista levanta questões complexas relacionadas com a identidade dos clubes, a cisão entre as SAD e os clubes e os direitos desportivos e patrimoniais associados. Partilharia com os dirigentes do Boavista a ideia de que a centralidade da identidadee da base associativa é fundamental, na medida em que entendo que o maior ativo de um clube não são as suas infraestruturas, nem os seus ativos financeiros, mas antes a comunidade que o apoia, os seus sócios e a sua história. Quando se corta essa ligação entre a equipa profissional e o sentimento popular, corre-se o risco de criar uma entidade sem alma. No caso do Belenenses, a decisão de continuar com o clube original, mesmo que isso implicasse começar na distrital, revelou-se uma opção com força simbólica e prática: a equipa voltou a crescer com o apoio genuíno dos seus adeptos embora seja um caminho muito duro e não isento de riscos. Depois alertaria para a necessidade de planeamento estratégico a longo prazo: na voragem do futebol profissional, com a pressão dos resultados desportivos e das contas a fechar, é fácil tomar decisões de curto prazo. Mas os dirigentes do Boavista devem ponderar cuidadosamente o que querem que o clube seja daqui a 10 ou 20 anos. Sendo claro que o modelo da SAD se revelou insustentável e alienante, poderá haver um futuro no regresso às raízes, tal como o Belenenses fez. Mas isso exige preparação, comunicação transparente com os sócios e um compromisso inabalável com os valores fundadores do clube. Por fim, deixaria uma nota mais humana: a crise que o Belenenses viveu foi dolorosa, mas também regeneradora. Trouxe ao de cima o que verdadeiramente significa ser de um clube: a ligação emocional, a pertença, o orgulho em valores que não se compram. Se o Boavista passar por algo semelhante, pode também encontrar nessa adversidade uma oportunidade de renascimento.
Nos primeiros anos, quando clube e B-Sad jogavam em escalões diferentes, houve divisão entre os sócios. Quais os danos causados ao tecido social? Esse é um perigo para que os boavisteiros devem estar avisados?
No caso do Belenenses não foi propriamente uma divisão, houve um número mínimo, não significativo de sócios que em 2018 foram atrás da equipa da SAD para o Estádio do Jamor e que hoje diria praticamente voltaram quase todos ao Restelo. Mas sem dúvida que um dos maiores perigos que os boavisteiros e qualquer comunidade clubística em situação semelhante devem ter bem presente é a rutura do tecido social e emocional que une os sócios e adeptos ao seu clube. No caso do Belenenses, os primeiros anos após a cisão entre o Clube e a B-SAD foram marcados por uma profunda crise de identidade pois na sociedade civil toda a gente falava em dois Belenenses e por isso houve danos muito profundos na unidade identitária do Belenenses e isso foi uma das principais feridas. A sociedade civil e os órgãos de comunicação social em geral não sabiam qual dos dois projetos era o verdadeiro Belenenses: a B-SAD, que continuava na I Liga; ou o clube original, que recomeçava nos distritais. Esta confusão gerou debates acesos nas redes sociais, assembleias turbulentas e até divisões dentro de famílias. As perguntas “quem é o verdadeiro Belenenses?”, ou “de qual Belenenses é que és?” tornou-se uma fonte de conflito constante. O Boavista, se se vir envolvido numa cisão semelhante, corre exatamente o mesmo risco: o de ver a sua massa adepta dividida entre o “realismo” de apoiar a SAD (pela competitividade e visibilidade) e a “fidelidade” de apoiar o clube histórico. No caso atual do Boavista, como vão ambos disputar o Distrital, penso que haverá menos exposição mediática e porventura menos dúvidas. No caso do Belenenses devo dizer que houve uma nota positiva a registar já que quando se poderia pensar numa fragmentação associativa e perda de envolvimento o que sentimos foi que a partir de 2018/19 os sócios uniram-se em torno do clube e a convivência entre sócios nas bancadas e nas atividades culturais e sociais do clube ganhou uma dinâmica muito grande. No nosso caso não houve um esvaziamento do associativismo o que a ter acontecido seria um dano profundo e difícil de reparar, pois minaria a base democrática e afetiva que sustenta qualquer clube tradicional. Aviso também os boavisteiros que ,no nosso caso, sofremos um impacto nas camadas jovens na medida em que os pais e os jovens atletas foram obrigados a escolher entre representar as formações da SAD com a esperança de chegarem à primeira equipa na Liga 1 ou ficar no clube original, cuja equipa principal militava nas últimas divisões distritais da AF Lisboa. O Boavista com esta divisão poderá ver a sua formação, uma das mais tradicionais do país, desmembrada ou desvalorizada. Portanto, diria que os boavisteiros devem estar seriamente avisados para este perigo. A divisão entre clube e SAD não é apenas uma questão administrativa ou jurídica é uma ferida emocional e social. Preservar a unidade do clube, garantir uma comunicação transparente com os sócios e resistir a soluções fáceis que comprometem a identidade a longo prazo são prioridades fundamentais. O exemplo do Belenenses serve como alerta claro: reconstruir a coesão depois da cisão é possível, mas doloroso.
Com dois dos cinco campeões nacionais da I Divisão a serem obrigados a percorrer o caminho das pedras para não
hipotecarem a sua identidade, que ilações devem ser tiradas?
A realidade de dois dos cinco campeões nacionais da I Divisão, o Belenenses e, potencialmente, o Boavista, serem forçados a percorrer o caminho das pedras para preservar a sua identidade é um sintoma claro de um problema estrutural no modelo de governação do futebol português. Esta situação não é fruto do acaso, nem de más gestões isoladas, mas sim da fragilidade do equilíbrio entre tradição e profissionalismo, entre paixão e negócio, entre o jogo jogado e os ativos financeiros. Há várias ilações a retirar, e todas elas têm implicações profundas, tanto para os clubes como para o próprio sistema futebolístico nacional. Parece-me evidente que o atual modelo das SAD não protege os clubes nem a sua história. A criação das SAD visava profissionalizar a gestão dos clubes, atrair investimento e garantir maior rigor financeiro, nomeadamente acabar com dívidas ao Estado. Como se compreende com os casos do Belenenses, do Boavista e de praticamente todas as SAD em Portugal, nenhum destes objetivos foi alcançado. De fato, a prática revelou um desalinhamento perigoso entre os interesses empresariais das SAD e os valores desportivos e comunitários dos clubes. Quando os clubes perdem a maioria do capital da SAD, perdem também o controlo sobre o seu destino futebolístico. Belenenses e Boavista mostram que o clube pode tornar-se refém da SAD e não o contrário. A identidade, os símbolos, o estádio, a formação, tudo pode ser alienado. A lição é clara: um clube com adeptos, com massa crítica, nunca deve abdicar do controlo estratégico sobre o seu futebol profissional. O Belenenses optou por preservar a sua identidade mesmo que isso tenha significado recomeçar nas divisões inferiores. Este é um sinal poderoso: os adeptos e sócios estão dispostos a sacrificar vitórias a curto prazo em nome da fidelidade aos valores e à história do clube. A lição para outros clubes é que a marca emocional de um clube não se compra nem se substitui facilmente. Jogar na I Liga sem alma nem ligação aos adeptos é, no fundo, uma forma de despromoção silenciosa. Entendo que os reguladores desportivos devem repensar a legislação, a Federação Portuguesa de Futebol e a Liga Portugal devem retirar ilações sérias: o quadro legal atual não protege adequadamente os clubes da sua própria dissolução identitária. Seria necessário repensar regras como: a obrigatoriedade do clube manter participação maioritária na SAD; a salvaguarda absoluta do uso da marca, do emblema e do estádio; a facilitação de processos de recompra ou reversão da maioria do capital em casos de conflito ou desvio de finalidade desportiva. Se queremos continuar a ter SAD em que a maioria do capital é detida por investidores externos é essencial escrutinar a origem dos capitais e conciliar o investimento com a proteção da história e da identidade dos clubes. Acredito que o futuro do futebol passa pela revalorização do associativismo e por outro princípio que sempre tenho defendido: deveria ser permitido que clubes e associações desportivas pudessem competir livremente e em concorrência com sociedades desportivas. Ou seja, os clubes que quisessem continuar a ser clubes nas ligas profissionais deverias puder competir com esse modelo e os que quisessem ser sociedades desportivas competiriam dessa forma. Assim acontece em Espanha e daí nenhum mal vem ao mundo, aliás antes pelo contrário. Esta crise revela uma verdade muitas vezes esquecida: os clubes são, acima de tudo, coletividades com alma, feitas de pessoas, não de balanços financeiros. Quando a lógica empresarial se sobrepõe ao associativismo, o risco de colapso identitário torna-se real. A lição que os boavisteiros, belenenses e outros adeptos devem tirar é que o envolvimento ativo dos sócios é a única garantia de sobrevivência dos clubes a longo prazo. Ver dois campeões nacionais, com décadas de história, a lutar para não perderem a sua alma, devia ser um sinal de alarme para todo o futebol português. O “caminho das pedras” pode ser digno e regenerador, mas não devia ser inevitável. A grande lição é esta: sem identidade, sem sócios e sem raízes, um clube deixa de ser um clube, é apenas uma empresa entre outras. E isso, no futebol, é a maior derrota possível.
Quando um clube fecha acordo com uma entidade e lhe dá as chaves do futebol profissional, que cautelas devem ser, antes, tidas?
Quando um clube decide celebrar um acordo com uma entidade externa, seja uma empresa, um investidor ou uma futura SAD e lhe entrega o controlo do futebol profissional, está a dar um dos passos mais delicados e irreversíveis da sua história. Este tipo de decisão pode assegurar estabilidade financeira e competitividade a curto prazo, mas também pode resultar, como os casos do Belenenses e do Boavista demonstram, na perda da identidade, autonomia e património desportivo. Para evitar cair nesse abismo, há várias cautelas essenciais que os clubes devem ter antes de “dar as chaves” do futebol profissional: desde logo garantir que o clube mantém o controlo estratégico (maioria do capital e dos votos). O mais importante é que o clube nunca abdique da maioria do capital da SAD (ou dos direitos de voto correspondentes). Só com essa maioria poderá garantir que tem a última palavra sobre decisões críticas, como: transferência da sede; uso do nome e emblema; escolha do estádio; direção desportiva e linhas estratégicas. Perder a maioria é entregar o coração do clube a terceiros, com o risco de o ver transformado, esvaziado ou até desmembrado. A participação mínima não deve ser simbólica, deve ser estruturante e blindada. Em caso de alienação o clube fundador deve blindar juridicamente a marca, o emblema e o património histórico. O contrato entre o clube e a SAD deve conter cláusulas claras e inegociáveis sobre: o uso da marca e dos símbolos do clube, que deve depender sempre de autorização revogável; a proteção do estádio e das instalações desportivas, impedindo a sua alienação ou uso sem acordo do clube; o reconhecimento do clube como detentor da identidade histórica, mesmo que a SAD explore o futebol profissional. Sem estas salvaguardas, a SAD pode passar a utilizar o nome e o emblema do clube mesmoapós um eventual conflito ou rutura, como se viu no caso da B-SAD, o que cria confusão entre os adeptos e danos reputacionais profundos. Deve também estar previsto no contrato um direito de recompra ou de reversão da maioria do capital, acionável em situações como: quebra de contrato ou violação de valores estatutários; incumprimento financeiro reiterado; desvio de objeto social; perda de representatividade Desportiva. Este mecanismo permite ao clube recuperar o controlo em caso de degradação da relação ou desvio de rumo, como aconteceu com o Belenenses, que perdeu completamente a SAD e foi forçado a recomeçar do zero. É fundamental também exigir transparência na estrutura acionista da SAD. Antes de fechar o acordo, o clube deve exigir: total transparência sobre quem são os investidores, de onde vêm os fundos e quais os objetivos; garantias sobre a não cedência futura de ações sem consentimento do clube; verificação de que não há interesses incompatíveis com os valores históricos. Um clube não pode ser apanhado de surpresa por alterações no capital da SAD que resultem, por exemplo, em investidores cuja proveniência do capital é duvidosa. Deve também assegurar representação ativa do clube nos órgãos sociais da SAD. Mesmo que o clube não detenha a totalidade da SAD, deve ter lugares obrigatórios nos órgãos sociais, com poder efetivo: Conselho de Administração; Assembleia Geral; Conselho Fiscal ou de Supervisão. É fundamental que a visão do clube esteja presente em todas as decisões e não apenas como observador. Em suma, diria que fechar um acordo para entregar a gestão do futebol profissional não é um simples negócio, é um pacto de confiança com repercussões existenciais. Se mal acautelado, esse pacto pode significar a perda da alma do clube, o afastamento dos sócios e o fim de um legado centenário. O clube deve agir como guardião da sua identidade, e não como um vendedor de curto prazo. Porque no futebol, quem entrega as chaves sem ler bem o contrato, arrisca-se a ficar trancado do lado de fora da sua própria casa.
Se o Belenenses voltar a ter investidores externos, o clube, porque ‘gato escaldado de água fria tem medo’, não abdicará de manter a maioria do capital?
Muito provavelmente, não abdicará, nem deve abdicar, da maioria do capital, precisamente porque a dolorosa experiência vivida com a Belenenses SAD deixou marcas profundas e ensinamentos claros. O velho provérbio aplica-se com rigor neste caso: “gato escaldado de água fria tem medo”. Depois de ter perdido o controlo do futebol profissional e ter assistido à apropriação da equipa principal por parte de terceiros, o Clube de Futebol “Os Belenenses” ganhou uma consciência renovada da importância de nunca abdicar da soberania sobre o seu destino desportivo. Coexistem várias razões para o Belenenses não abdicar da maioria do capital social, desde logo porque a identidade do clube é inegociável. O principal ensinamento da cisão com a B-SAD foi que, sem controlo da SAD, o clube pode perder o nome, o emblema, o estádio, os jogadores da formação e o contacto com os adeptos. A identidade clubística, construída ao longo de mais de um século, ficou, por momentos, diluída, e só foi recuperada à custa de muito esforço e sacrifício. Esse trauma torna agora impensável ceder de novo a maioria do capital a qualquer investidor. Acredito que a massa associativa não o permitiria. O Belenenses tem hoje uma massa associativa muito mais vigilante, exigente e informada. O processo da cisão mobilizou os sócios, que se organizaram, votaram, discutiram, e reconstruíram o clube com base em valores como transparência, participação e fidelidade àhistória. Qualquer proposta que envolvesse a perda da maioria da SAD dificilmente passaria numa assembleia geral e mesmo que passasse, geraria forte contestação. Embora também deva dizer que com o decorrer dos anos após o recomeço e se a equipa não subir rapidamente às ligas principais há partes da massa associativa que se deixam apoderar por sentimentos de ansiedade e embora acredite que querem essa subida a qualquer preço receio que a impaciência possa empurrar, no futuro mais ou menos longínquo, o clube de novo para caminhos tortuosos. Mas os clubes serão sempre aquilo que em cada momento os seus sócios quiserem. É preciso paciência e resiliência. Por outro lado, diz-me a experiência, de imensos contactos tidos nos últimos anos com gente de várias latitudes e proveniências, que não é fácil atrair investimento, bom investimento, sem o clube e os sócios perderem o controlo do seu futebol. Agora verifico que uma das grandes lições que o futebol português (e europeu) começa a compreender é que não é necessário entregar a maioria do capital a investidores para garantir sustentabilidade financeira. É possível, com tempo, criar parcerias estratégicas com limites claros; emitir ações preferenciais sem direito de voto; garantir entrada de capital através de fundos afetos a projetos específicos (formação, infraestrutura, comunicação, digital, etc.). Ou seja, há formas de captar investimento sem abdicar da chave do cofre e o Belenenses, conhecendo agora os riscos, privilegiará seguramente essas alternativas. Por tudo isto acredito que o Belenenses dificilmente abdicará da maioria do capital caso volte a envolver-se com investidores externos e não só por medo, mas por consciência histórica, responsabilidade institucional e maturidade associativa. O clube aprendeu, da forma mais dura possível, que o preço de abdicar do controlo é demasiado alto. Agora, quem quiser investir no Belenenses terá de fazê-lo como parceiro, e não como dono. E essa, mais do que uma reação de defesa, é uma afirmação de identidade.
O que sucedeu ao Belenenses e agora ao Boavista, pode acontecer a qualquer um. Vivemos com os mecanismos legais adequados à situação, ou aceitar um investidor é como jogar à ‘roleta russa’?
O que sucedeu ao Belenenses e, potencialmente, ao Boavista pode mesmo acontecer a qualquer clube. Nenhum emblema está imune ao risco de perder o controlo do seu futebol profissional quando entrega as chaves a “investidores”. E isso levanta uma questão séria e urgente: estamos juridicamente preparados para proteger os clubes? Ou aceitar um investidor continua a ser, na prática, jogar à roleta russa? A resposta honesta? É mais roleta russa do que sistema protegido. Os mecanismos legais atualmente em vigor são frágeis, insuficientes e desajustados à realidade afetiva e associativa dos clubes. Embora exista um quadro normativo que regula as SADs, a legislação privilegia uma lógica de mercado e capital, e não salvaguarda devidamente a identidade dos clubes nem os seus interesses a longo prazo. O quadro legal em vigor tem várias lacunas. O modelo legal permite que um clube ceda a maioria da SAD, e com isso o controlo efetivo sobre o futebol profissional. Embora essa decisão deva ser aprovada em assembleia geral, não há qualquer mecanismo que impeça essa cedência nem que a reverta automaticamente em caso de litígio grave, como se viu no Belenenses. A legislação não impõe automaticamente que o clube mantenha o direito exclusivo sobre a marca, o emblema ou os equipamentos. Isso faz com que a SAD possa continuar a usar o nome e o símbolo do clube, mesmo que as duas entidades estejam em litígio, gerando confusão pública e feridas institucionais, como aconteceu com a B-SAD. Nada obriga os contratos a preverem cláusulas de reversão em caso de incumprimento, abuso de posição ou desvio de objetivos desportivos. Isso faz com que, uma vez perdido o controlo, o clube fique com pouca ou nenhuma margem de recuperação. De momento, com a nova revisão já nem sequer é permitido fazer o que fez o Belenenses: recomeçar do zero e fazer nova SAD quando chegar de novo aos campeonatos profissionais. Por outro lado, a fiscalização pública e federativa é quase inexistente, nem o Estado, nem a FPF, nem a Liga, têm um papel ativo na validação ou controlo prévio dos acordos entre clubes e investidores. A lógica é liberal: se os sócios aprovam, está tudo bem. Mas a verdade é que muitos sócios votam mal informados, sob pressão financeira, e sem perceber o impacto a longo prazo. Para deixar de jogar à roleta russa, seria essencial impor que o clube fundador mantenha sempre pelo menos 50%+1 do capital e dos direitos de voto da SAD; tornar obrigatória a salvaguarda contratual do nome, marca e património; criar mecanismos legais automáticos de reversão em caso de litígio grave ou afastamento da finalidade desportiva; reforçar o papel da FPF e da Liga na validação e monitorização das relações clube–SAD; educar e capacitar os sócios para decisões informadas e conscientes. Em conclusão, aceitar um investidor, nos moldes legais atuais, continua a ser um ato de fé, ou pior: uma aposta de alto risco. Para muitos clubes, é a única forma de sobreviver financeiramente. Mas sem garantias legais mínimas, essa aposta pode acabar em rutura, perda de identidade e recomeço traumático. O que aconteceu ao Belenenses, e agora ameaça o Boavista, é um alerta nacional. O futebol português precisa urgentemente de rever o seu modelo jurídico para que investir num clube deixe de ser um jogo de azar — e passe a ser um compromisso sério com o desporto, a história e os adeptos.
Aceita, se tal lhe for solicitado, partilhar com o Boavista a experiência do Belenenses?
- Sou, desde há uns anos, frequentemente procurado por presidentes de clubes com situações de conflito com as suas SAD e até por presidentes de SAD que também tentam perceber os nossos pontos de vista sobre estas matérias. A rivalidade é só dentro do campo e no caso de Belenenses e Boavista é muito grande. No entanto temos todos a responsabilidade de contribuir para um futebol melhor. O Presidente do Boavista já me solicitou colaboração e aceito com todo o sentido de responsabilidade partilhar a experiência do Belenenses com o Boavista, ou com qualquer outro clube que se veja em risco de perder a sua identidade. Não se trata apenas de revisitar uma história dolorosa, mas de tornar essa dor útil. Aquilo que o Belenenses viveu não foi apenas um episódio isolado, foi uma ferida aberta no coração do futebol português, e uma lição valiosa sobre o que acontece quando a lógica empresarial ultrapassa a alma associativa de um clube centenário. Para além disso, como disse, entendo haver uma obrigação moral de transmitir o conhecimento vivido. O Belenenses sofreu, mas sobreviveu. Recomeçou do zero, reconquistou divisões, recuperou o orgulho. Foi uma travessia difícil, mas também regeneradora. Hoje, sabe-se com clareza o que não fazer, o que salvaguardar, o que nunca mais repetir. E essa bagagem pode ser crucial para o Boavista ou para qualquer clube em risco de repetir os mesmos erros. O que posso partilhar com o Boavista e o seu Presidente é que como se vive a divisão entre clube e SAD no dia a dia: nos adeptos, nos sócios, na formação, nas bancadas vazias; como se reconstrói um clube desde as distritais, com dor, mas com dignidade; como se protegem, no futuro, o emblema, o nome, o estádio, os valores e a história; como se volta a crescer, fiel a si mesmo, sem vender a alma ao desespero financeiro. A partilha não é para julgar ou para dramatizar, é um gesto de solidariedade entre clubes históricos, que sabem que o futebol é mais do que contratos, balanços e investidores. É memória, comunidade, pertença. E quando um clube como o Boavista, centenário, campeão nacional, símbolo do futebol da cidade do Porto, corre risco de rutura, todos os que já passaram por isso devem estender a mão. Portanto aceito partilhar a experiência porque se o Belenenses teve de aprender pela dor, então que o Boavista (e outros) possam aprender pela escuta e pela prevenção. O futebol português precisa urgentemente de uma cultura de cooperação entre clubes que já sofreram para que a história não se repita, apenas se transmita.
Numa situação destas, quais as principais âncoras dos clubes, para além da força dos sócios? Não perder o foco nas camadas de formação e nas restantes modalidades?
Numa situação de crise identitária como a vivida pelo Belenenses, e que agora ameaça o Boavista, as âncoras fundamentais de um clube, para além da força dos seus sócios, são aquelas que o ligam à sua essência, à comunidade e ao futuro. Em momentos de rutura com a equipa profissional ou com a SAD, é essencial que o clube não perca o norte nem a sua raiz estrutural, mesmo que perca temporariamente protagonismo no plano competitivo. Existem âncoras que garantem a sobrevivência e regeneração de um clube em contexto de cisão:
- A formação: o verdadeiro pulmão do clube pois as camadas jovens são, muitas vezes, o elo mais duradouro entre o passado e o futuro de um clube. Mesmo que a equipa principal estejaem divisões inferiores, continuar a formar atletas com os valores do clube, nos escalões de base, permite: manter viva a identidade desportiva; cultivar um sentimento de pertença nos jovens jogadores e nas famílias; preparar o futuro competitivo, caso haja um recomeço nos distritais ou noutra estrutura. Além disso, a formação é uma âncora social e comunitária pois é nela que os clubes mais históricos frequentemente têm o seu papel mais profundo nas localidades onde estão inseridos.
- As modalidades amadoras que são o cimento da alma eclética. Manter ativas as modalidades não profissionais (andebol, basquetebol, voleibol, futsal, atletismo, natação, rugby, etc.) é mais do que uma questão de resistência, é um ato de afirmação de identidade. As modalidades ligam o clube aos seus valores fundadores; mantêm o envolvimento de dezenas ou centenas de atletas, treinadores e famílias e reforçam a imagem de clube como “coletividade desportiva e social”, e não apenas como empresa de futebol. No caso do Belenenses as modalidades foram essenciais para manter viva a ligação emocional e física ao Restelo. Também num momento de cisão ou recomeço, a história torna-se uma âncora emocional e simbólica. É fundamental manter ativos o museu do clube; a comunicação sobre antigos jogadores, títulos, glórias e símbolos e a coerência visual: o emblema, o hino, as cores, os Lemas. A memória é um fator de resistência — ajuda os sócios a lembrarem-se do que está em causa e por que vale a pena lutar. É fundamental também manter a comunicação com os sócios e a opinião pública. Um clube que enfrenta uma cisão ou conflito institucional deve investir numa comunicação clara, transparente e frequente. Explicar aos sócios e ao público o que está a acontecer, o que está em risco e como se pode reconstruir é vital para evitar desmobilização e confusão; gerar confiança e adesão ao projeto de reconstrução e distinguir o clube da SAD. Sim, os sócios são a âncora maior, o verdadeiro “coração” do clube. Mas a formação, as modalidades, a ligação ao território, a preservação da memória e a boa comunicação são os pilares que dão estrutura, continuidade e legitimidade à luta por um clube autónomo, fiel a si mesmo e capaz de renascer. Num momento de crise, manter essas âncoras não é apenas desejável, é vital. É nelas que reside a força para reconstruir com dignidade, em vez de desaparecer em silêncio.
Os primeiros anos nos escalões inferiores são desportivamente menos exigentes e depois a malha vai apertando. O caminho das pedras – e no caso do Belenenses já teve de sobreviver a uma descida de escalão - só pode ser percorrido com convicção e resiliência?
Sim, sem dúvida: o chamado “caminho das pedras”, o percurso de um clube que tem de recomeçar nos escalões inferiores para preservar a sua identidade, só pode ser percorrido com convicção, resiliência e um profundo sentido de missão coletiva. No caso do Belenenses, essa caminhada não foi apenas uma travessia desportiva, mas um ato de resistência emocional e institucional. Começar nos distritais pode parecer, à primeira vista, fácil, mas rapidamente se percebe que o desafio é tão ou mais exigente do que em ligas superiores, ainda que por outras razões. Nos primeiros anos, nos escalões distritais, o nível técnico e tático dos adversários é, à partida, inferior ao que se encontra nas ligas profissionais. Mas isso não significa facilidades. Pelo contrário, os campos são maus, as equipas adversárias são aguerridas e motivadas por defrontar um “histórico”, a logística é limitada, os jogos são em horários difíceis, as deslocações complicadas, existe pouca visibilidade; os árbitros e estruturas são amadores, gerando mais margem para erros ou injustiças. Isto tudo exige humildade competitiva. Um clube como o Belenenses, com história europeia e títulos, viu-se a jogar em campos sem bancadas, com orçamentos mínimos e teve de provar o seu valor e a sua superioridade semana após semana. Vivemos situações fantásticas com gente pura, verdadeiramente felizes e honrados por nos receberem nas suas casas e nos seus campos de futebol. Depois, à medida que se sobe, a exigência cresce e as margens de erro diminuem. À medida que se sobe para os campeonatos nacionais (Campeonato de Portugal, Liga 3, etc.), a malha aperta: os adversários passam a ser mais estruturados, profissionalizados e com ambição própria; os erros, que nos distritais podem ser recuperáveis, tornam-se decisivos; as exigências logísticas, legais e financeiras crescem; há pressão crescente, num clube grande como nós, para subir rapidamente, o que pode gerar impaciência ou decisões de risco. O Belenenses teve, aliás, de lidar com uma descida de divisão na Liga 2, depois de cinco subidas de divisão consecutivas, provando que o trajeto não é linear nem garantido. Mesmo com o apoio dos adeptos e um nome forte, os obstáculos são reais. Sem convicção, o projeto desfaz-se ao primeiro revés. Convicção no sentido de acreditar que o clube é mais do que a divisão em que joga; manter a fidelidade aos seus princípios, mesmo quando as tentações do atalho surgem (ex: fusões, vendas apressadas); defender que recomeçar com dignidade é preferível a sobreviver sem identidade. E sem resiliência, não se sobrevive: é preciso aguentar momentos de desânimo, jogos difíceis, críticas externas; é preciso manter a base associativa unida, mesmo sem grandes vitórias imediatas; é preciso continuar a acreditar e a trabalhar mesmo depois de uma descida ou de um ano menos bem-sucedido. Apesar da dureza, o caminho das pedras tem algo de purificador. Permite ao clube: reforçar os laços com os seus adeptos mais fiéis; redescobrir o associativismo; voltar a crescer com base sólida, sem dependência de investidores externos; educar uma nova geração de atletas e adeptos nos valores do clube. Portanto, o caminho das pedras exige convicção e resiliência como nunca antes. Mas também pode ser um percurso de renascimento com sentido, dignidade e autenticidade. O Belenenses mostrou que é possível. Outros clubes, como o Boavista, se tiverem de passar por ele, devem saber que não será fácil, mas será possível, se forem fiéis a si mesmos. Porque um clube com alma não se mede pela divisão em que joga, mas pela força com que recusa vender essa alma.