Há assuntos que por serem injustos, prejudiciais ou atentatórios merecem a revolta para com a sua existência. Felizmente, aquilo que aqui nos traz não é um tema portador de características nocivas. Pelo contrário, é até um daqueles casos em que, por recomendação do bom senso, mais vale aceitar que se trata da ordem natural das coisas.

Há muitas razões que conseguimos empilhar para a preponderância de Viktor Gyökeres. Mas porque nem tudo foi feito para ser compreendido, há algo no sueco que não vale a pena tentarmos explicar. Parece mesmo haver um código secreto entre ele e forças que vivem uns minutos à frente na linha cronológica com a responsabilidade de contarem ao avançado o sítio exato onde a sua guloseima favorita vai aparecer.

Gyökeres foi um absoluto usurpador. Não estamos perante um daqueles dias em que a sua rochosa composição, sozinha, arcou com o peso morto dos colegas. Aliás, na era Rui Borges, a vitória contra o Moreirense (3-1) terá sido, até aos 55 minutos, uma das exibições com maior coletivismo e domínio do Sporting. No entanto, a prontidão do nariz da equipa leonina leva-o, por via olfativa, a ficar até com o que não lhe está destinado.

Na primeira vez em que marcou, a bola estava ao jeito de Geny Catamo. O moçambicano errou o remate e um lance que parecia perdido ganhou um novo rumo quando, aparentemente por acaso, Gyökeres encostou para a baliza. Na segunda, Trincão conduziu um contra-ataque e resolveu ele próprio tentar a finalização. O tiro fez ricochete nos defesas e acabou nos pés de... esse mesmo. Pode ser faro de golo, mas isso seria humanizar um ser que de certeza tem um sexto sentido que o ajuda nesta atividade da marcação de golos. Ao longo da Sexta-Feira Santa, acabaria por marcar uma terceira vez, de livre direto. Num dia em que a tradição católica sugere que se deve recusar a ingestão de carne, a besta que há em Gyökeres saciou-se com o mesmo de sempre e nem por um momento pensou alterar a dieta.

Gyökeres é um talento à vista de todos, não um daqueles que Aurélio Pereira, homenageado no polo norte dos corações dos jogadores do Sporting, descobriu em idade precoce. Também o minuto de silêncio em honra do fenecido olheiro do clube foi um dos momentos da jornada em que os leões pagaram a renda para continuarem na liderança do campeonato, na pior das hipóteses, em igualdade pontual com o Benfica.

TIAGO PETINGA

Desde logo, a equipa de Rui Borges começou por aproveitar o pouco resguardo à dianteira da linha defensiva do Moreirense. Introduzindo-se nesse espaço, o Sporting foi conseguindo dar andamento ao jogo e desfolhar lances de perigo.

Requisitos vários têm que ter aqueles que em dupla fazem o que outras equipas promovem a três ou mais no meio-campo. Multifuncionalidade é assunto que muitas vezes não assiste a Hjulmand e Debast por razões nada complexas de explicar. Um porque está habituado a um posicionamento mais estanque, o outro porque está deslocado da posição de origem. Na aprendizagem que é coabitar com outra pessoa, o dinamarquês multiplicou o conjunto de virtudes, lavrando espaços em desmarcações sem bola para as costas da linha defensiva do Moreirense incomuns nas suas prestações, mas importantes para que os centrocampistas do Sporting não sejam fita-cola dupla face.

Rui Borges foi menos demorado do que tem sido noutras alturas a colocar Geovany Quenda sobre a direita, zona onde o extremo tem superior influência. A química com Francisco Trincão – nada de ciúmes, Franco Israel –, em complementares movimentações dentro/fora, manteve intacto o sistema cardiovascular do corredor. A esta parelha, instigada a violentar as entranhas de Maracás e Frimpong, juntaram-se as movimentações de Hjulmand que originaram o primeiro golo. Pela esquerda, Maxi Araújo batia com facilidade Dinis Pinto e conquistava a linha de fundo para repetir cruzamentos atrasados.

TIAGO PETINGA

O Moreirense acautelou-se para a segunda parte. Cristiano Bacci colocou mais gente a defender a largura e apetrechou a zona central com Ismael. Notaram-se melhorias no 10.º classificado do campeonato que após sofrer o 3-0, aos 52 minutos, passou por instantes de protagonismo no jogo. Cédric Teguia marcou de cabeça ao aparecer nas costas do descuidado Maxi Araújo. Até aí, o guarda-redes do Sporting poucas vezes ouviu os adeptos gritarem Ruiiiiii como fazem sempre que toca na bola. Os defesas estavam capazes de lidar com os problemas mesmo que Diomande tenha visto amarelo logo aos três minutos. Ainda assim, instantes a seguir ao golo, Yan Maranhão esteve perto de reduzir mais a distância.

Por mais traumático que tenha sido esse curto período de não mais de cinco minutos, o Sporting conseguiu voltar a controlar o jogo. Pedro Gonçalves entrou para o lugar de Quenda aos 68’, mas Pote não veio com sede suficiente para voltar aos golos.

A música “Loucos de Lisboa”, dos Ala dos Namorados, que os adeptos do Sporting cantam numa versão adaptada, faz um pedido aos jogadores – “façam-nos acreditar” – que saiu reforçado pelo entusiasmo sentido em Alvalade. Na casa do leão já ninguém espera sair de onde está na tabela.