
Na terra onde Bruce Springsteen cantou o desalento da juventude americana, foi a voz grave de Cláudio Ramos que se impôs no silêncio do MetLife Stadium. O FC Porto estreou-se no Mundial de Clubes com um empate a zero frente ao Palmeiras, numa noite em que as bancadas não mentiram à televisão – ainda que as câmaras o tentassem – e o futebol oscilou entre o caos sul-americano e a busca frustrada por ordem europeia. Sob o céu quente e carregado de New Jersey, dragões e verdões anularam-se num duelo de ritmos desencontrados, técnica emergente e promessas por cumprir.
Havia no ar um contraste evidente entre projetos: de um lado, o Palmeiras, de Abel Ferreira, consolidado, enraizado, competitivo como sempre; do outro, o FC Porto, de Martín Anselmi, ainda à procura da sua voz, num esboço de identidade a carvão. Os dragões chegavam feridos, vindos de uma temporada atípica e sem brilho, apoiados por uma minoria ruidosa de emigrantes azuis e brancos, desejosos de um sinal. Tiveram-no, não através de um golo, mas de uma resistência.
Este não foi apenas um empate. Foi uma espécie de tratado de sobrevivência. O FC Porto, ainda com os pés algo sujos da época passada e os olhos postos na miragem de um novo horizonte, enfrentou o projeto consolidado de Abel Ferreira, um Palmeiras afiado, taticamente oleado e emocionalmente blindado por anos de vitórias. E enfrentou-o com coragem. Não com domínio, não com clarividência, mas com fibra. Com suor. Com Cláudio Ramos.
Ora, a partida começou como uma dança desequilibrada, onde ambos procuravam marcar o passo. Logo aos dois minutos, João Mário apareceu a ganhar as costas de Piquerez, invadiu a área e obrigou Weverton a aquecer as luvas. Foi um sinal precoce, mas não decisivo. No lance seguinte, Alan Varela errou em zona proibida e ofereceu a Estêvão a primeira ocasião flagrante do encontro – remate colocado a rasar o poste da baliza defendida por Cláudio Ramos.
Ambas as equipas defendiam num 5-3-2: no Palmeiras, era Estêvão quem se juntava a Vítor Roque na linha da frente; no FC Porto, era Rodrigo Mora quem se juntava a Samu, oferecendo alguma iniciativa, sabendo que o Palmeiras prefere atacar com espaços (como se viu, aliás, nas ocasiões criadas).

O jogo tornou-se rapidamente num carrossel emocional: de um lado, a verticalidade instintiva dos brasileiros; do outro, a tentativa portista de controlar, criar e reagir. Gabri Veiga, recém-chegado e com sede de afirmação, tentou assumir a batuta, ainda que colado ao flanco esquerdo. Mostrou condução, visão, mas pouca integração. Samu, lá na frente, era um náufrago num mar revolto, demasiado isolado para causar dano real.
Ainda assim, há que ressalvar o a correspondência em apoio de Samu para enquadrar os médios, sendo fundamental nas aproximações perigosas da equipa. Condicionou a construção do Palmeiras e deixou um par de arrancadas. O problema é que o Porto raramente procurava prolongar e variar os ataques. Poucos foram os ataques organizados portistas que duraram mais de 30 segundos, muito por causa da tentativa de saída de bola a partir de trás, numa equipa sem centrais com perfil de construção, onde uma simples marcação a Alan Varela (irreconhecível, expondo demasiado a equipas com vários passes falhados em zona proibida) “obrigava” Cláudio Ramos a bater longo. Além disso, notava-se que o relvado também não estava nas melhores condições.
Continuando, Rodrigo Mora, com apenas 18 anos e 1,68m, não havia, dentro de campo, quem escondesse a bola com tanta sagacidade e conforto técnico. Foi dos poucos a criar brechas no meio do betão verde. Ao minuto 14, num lance pleno de engenho e ousadia, rematou junto ao solo, rente ao poste.
Minutos depois, um livre de Fábio Vieira quase resultou em autogolo de Felipe Anderson, salvo por Weverton em esforço. O FC Porto ameaçava com lampejos, mas faltava continuidade, faltava ligação. O Palmeiras, mais sólido, respondia com bolas tensas de Piquerez, desequilíbrios de Ríos e diagonais venenosas de Vítor Roque e Estêvão.
Com o intervalo à vista, o jogo atingiu o seu pico de adrenalina. Primeiro, um passe de Ríos rasgou a defesa portista, isolando Estêvão, que voltou a esbarrar em Cláudio Ramos. Depois, já nos descontos, num dos momentos mais intensos da noite, o guarda-redes português foi chamado a duas intervenções impossíveis – primeiro a negar Maurício, depois a travar de novo Estêvão, com Francisco Moura a completar o alívio em cima da linha.
Na retina dos adeptos, ficava o retrato de um guarda-redes em noite de coroação. Aos 33 anos, na sua estreia absoluta em provas internacionais, Cláudio Ramos provava que, mesmo na sombra de Diogo Costa, há um guardião pronto para segurar um ponto como quem segura uma corda sobre o abismo.
O recomeço trouxe mais do mesmo. Fábio Vieira, com um remate cruzado, voltou a testar os reflexos de Weverton logo aos 48’. Cinco minutos depois, Zé Pedro apareceu solto na área, na sequência de um canto, mas cabeceou por cima. O FC Porto espreitava, tentava, mas a faísca faltava. Do outro lado, Abel mexia no jogo com inteligência: Paulinho, Allan, Raphael Veiga, Flaco López… um exército fresco a invadir o relvado com fôlego novo.
Martín Anselmi respondeu com prudência. Saiu Gabri Veiga, entrou Pepê. Depois, entraram ainda Tomás Pérez, Eustáquio, André Franco e Nehuén Pérez, como quem fecha janelas antes da tempestade. O FC Porto foi recuando, sentindo o desgaste, jogando cada vez menos e resistindo cada vez mais. Era a pré-época mascarada de competição oficial. Faltavam pernas, mas sobrava alma.
O Palmeiras intensificou a pressão. Flaco López cabeceou perigosamente, Allan rematou forte para mais uma intervenção de Ramos e, ao minuto 83, Murilo acertou com estrondo no poste. O golo parecia inevitável. Mas não caiu.
Ao soar do apito final, havia frustração, mas também alívio. O Palmeiras sentiu que esteve perto, muito perto. O FC Porto sabia que podia muito bem ter perdido. E, no entanto, o empate foi mais do que um ponto: foi um recomeço, um fio de esperança, uma demonstração de que a equipa está viva e que pode crescer. Não foi uma exibição memorável em qualidade, mas foi marcante em resiliência.
No fundo, para o FC Porto, este empate vale mais do que parece. No futebol moderno, há empates que servem de alerta, de derrota camuflada. Mas há outros que funcionam como pausa necessária antes da explosão. Este foi dos segundos, até porque a verdade é que a haver um vencedor, esse teria sido o Palmeiras.
No fim de contas, este empate sem golos não será recordado pela sua exuberância técnica nem pela fluidez ofensiva, mas sim pela forma como simbolizou um ponto de viragem possível.
Para um FC Porto ainda a tentar encontrar-se no labirinto da sua nova identidade, o 0-0 contra um adversário mais preparado e mais enraizado no tempo vale como afirmação de resistência e de dignidade competitiva. Há neste jogo a semente de algo mais: um sinal de que, mesmo sem brilho, é possível competir, sobreviver e crescer. E, por vezes, num torneio de gigantes, é no silêncio de um nulo que se começa a construir o grito da afirmação.
Nota para Rodrigo Mora e Estêvão, os dois prodígios de 18 anos, que deram ao jogo um toque de futuro. Richard Ríos, num meio-campo de aço e veludo, provou porque é um dos médios mais completos da América do Sul. Cláudio Ramos, o joker inesperado, foi o homem da noite.
O grupo A fechou, assim, a jornada inaugural com dois nulos: Inter Miami e Al Ahly também não conseguiram desfazer o empate. Tudo igual, tudo por decidir. O FC Porto enfrentará agora Messi e companhia. O sonho americano continua – e apesar dos bolsos ainda não estarem cheios, há alma suficiente para seguir viagem.
Em suma, o FC Porto ainda caminha sobre cinzas de uma temporada desastrosa. Martín Anselmi luta para impor uma nova filosofia, distante do ADN histórico do clube. Por enquanto, entre avanços e hesitações, já há um ponto conquistado, uma exibição competitiva, uma baliza intacta. E, acima de tudo, há sinais. Sinais de que talvez o dragão esteja, finalmente, a acordar. Na América, como nos velhos contos de fadas, os sonhos também se constroem devagar. E este nulo, por mais estranho que pareça, pode ter sido o primeiro tijolo.