
O Papa Francisco, que hoje morreu, procurou uma atualização moderada da Igreja, mais aberta às periferias e minorias, com um discurso pela tolerância e paz num mundo polarizado e em guerra e numa Igreja ensombrada pelos abusos sexuais.
Desde que assumiu a liderança da Igreja Católica, Francisco assumiu o compromisso de "olhar para as periferias" e procurou ser um exemplo pessoal para o discurso de humildade e de defesa dos mais desfavorecidos, ao recusar os luxos do seu antecessor.
A preocupação permanente pelos mais desfavorecidos, a luta contra os escândalos dos abusos sexuais, a defesa do ambiente e da "casa comum", a par da reorganização da cúria e da abertura da discussão do caminho a seguir a todos os católicos, são alguns dos pontos que caracterizam a década do argentino Jorge Mário Bergoglio à frente da Igreja Católica.
O combate aos abusos sexuais foi assumido como uma das batalhas, levando-o a convocar uma cimeira no Vaticano em fevereiro de 2019, para "dar diretrizes uniformes para a igreja", prometendo "fazer tudo o que for necessário" para levar à justiça quem quer que tenha cometido algum tipo de delito.
As notícias, um pouco por todo o mundo, eram pontuadas por casos de abusos sexuais na Igreja Católica, com os Estados Unidos, Irlanda, França, Alemanha, Chile ou Austrália a darem o mote para a necessidade de atuação célere do Vaticano.
Perante este desígnio do Papa argentino, muitas conferências episcopais desencadearam, em alguns casos a contragosto, mecanismos para apuramento das situações de abuso em períodos definidos.
Foi assim que chegaram as notícias sobre milhares de casos identificados (ou, em alguns casos, extrapolados) por diferentes comissões de investigação criadas em vários países.
Não obstante os "ventos de abertura", Francisco pouco tempo depois da sua eleição na encíclica "Lúmen Fidei" (Luz da Fé) - texto que havia sido iniciado pelo seu antecessor Bento XVI, que renunciou ao papado em 28 de fevereiro de 2013 -, reiterou a firme oposição ao casamento homossexual, ao mesmo tempo que pedia aos crentes que "não sejam arrogantes, mas abertos ao diálogo", incluindo com os não crentes.
Mas seria dois anos depois, com a encíclica "Laudato Si" (Louvado Sejas), que o Papa argentino assumiu uma das suas grandes causas, defendendo que os países ricos devem sacrificar algum do seu crescimento e libertar recursos necessários para os países mais pobres, num texto em que propôs uma revolução social, ambiental e económica.
Cobrindo temas que vão do ambiente ao desemprego e falta de habitação, Francisco apelou em junho de 2015 às potências mundiais para salvarem o planeta, considerando que o consumismo ameaça destruir a Terra e denunciando o egoísmo económico e social das nações mais ricas.
Para o Papa, não há dúvida de que o aquecimento global é consequência da ação humana, afeta principalmente os mais pobres e é preciso uma "ecologia integral" em que "a humanidade tome consciência da necessidade de mudar modos de vida, produção e consumo" para o combater.
Cinco anos depois, nova encíclica papal, intitulada "Fratelli Tutti" (Todos Irmãos), dedicada à fraternidade e amizade social e na qual Francisco criticou o reacendimento de populismos, racismo e discursos de ódio, lamentando a perda de "sentido social" e o retrocesso histórico que o mundo está a viver.
Nessa encíclica, Francisco identificou o surgimento de "novas formas de egoísmo e de perda do sentido social, mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais" e associou discursos de ódio a regimes políticos populistas e a "abordagens económico-liberais", que defendem a necessidade de "evitar a todo o custo a chegada de pessoas migrantes".
Sobre o racismo, Francisco disse ser um "vírus que muda facilmente" e "está sempre à espreita", em "formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos".
A sua última encíclica, publicada em 24 de outubro de 2024 e intitulada "Dilexit nos" (Ele amou-nos), trata do "amor humano e divino do coração de Jesus Cristo", com críticas ao que considerou ser um mundo preso no consumo e violência.
"Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas", escreve o Papa.
O papa promoveu a reforma da Cúria (o Governo do Vaticano), um processo iniciado com a criação do Conselho de Cardeais, um mês após a sua eleição, que teve como ponto alto em 2022 a constituição apostólica 'Praedicate evangelium', extinguindo vários organismos e criando Dicastérios, que passam a funcionar como departamentos ministeriais do Vaticano.
Foi nesse contexto que o português Tolentino de Mendonça assumiu as funções de prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, uma reforma que levou à nomeação de uma mulher, em janeiro deste ano, para a liderança dos Institutos da Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica.
Em dezembro de 2023 foi publicada a declaração "Fiducia Supplicans" (Suplicando a Confiança), pela Doutrina da Fé, que aborda as chamadas "relações irregulares", vínculos monogâmicos de pessoas que não casaram pela Igreja.
Os padres passaram a ter permissão de realizar bênçãos a casais do mesmo sexo, mas também casais do sexo oposto que ainda não são casados, sem que isso signifique que as relações passem a ser abençoadas.
Esta decisão foi criticada por conservadores e por progressistas, gerando uma das polémicas que mostram a atualização do Vaticano, sem colocar em causa a doutrina.
Dentro da Cúria, os mais conservadores alinharam-se com o cardeal eleitor norte-americano Raymond Burke, um cardeal norte-americano crítico da abertura do Vaticano e defensor de um regime mais rigoroso no que respeita às relações homossexuais ou divorciados.
Outro dos cardeais eleitores, que progressivamente se tem afastado do Papa é o alemão Gerhard Müller, afastado da Congregação da Doutrina da Fé, que criticou a carta pastoral "Amoris Laetitia" (Alegria do Amor), de 2016, que abre a porta canónica aos divorciados recasados e a teologia latino-americana por uma tradicional "falta de rigor teológico".
Na gestão dos dinheiros do Vaticano, Francisco procurou também moralizar os processos. O cardeal Angelo Becciu, próximo do Papa, foi afastado por causa de um processo de corrupção que o levou a uma pena de cinco anos e meio de prisão.