
Em 2008, Boris Johnson venceu a presidência da Câmara de Londres com a promessa de reinventar os emblemáticos autocarros de dois andares. O resultado foi o “New Routemaster” — um veículo moderno, com linhas inspiradas na tradição, maior eficiência energética e menor impacto ambiental. A iniciativa teve mérito simbólico e tecnológico, mas enfrentou duras críticas: desde os custos às limitações de climatização, passando pela dificuldade de manutenção e baixa popularidade junto dos londrinos. A lição? Modernizar não chega. É preciso ouvir, respeitar e pensar a mobilidade urbana em todas as suas dimensões — funcional, técnica, simbólica e social.
Lisboa vive hoje um momento crítico. A pressão sobre os transportes públicos é real e crescente: novos residentes, trabalhadores deslocados e turistas multiplicam a procura numa rede subdimensionada. Em resposta, surgiram medidas fragmentadas - mais autocarros eléctricos nos bairros históricos, uma explosão de TVDEs, e tuk-tuks voltados apenas para o turismo. Mas estas respostas, embora pontuais, não resolvem o problema estrutural: a capital tem uma rede de transportes que já não serve nem o quotidiano dos lisboetas, nem o perfil socio-económico actual da cidade.
Entre os mais atingidos estão os eléctricos históricos. O que outrora foi um meio funcional, hoje é uma relíquia viva, pressionada até ao limite. A emblemática carreira 28E foi transformada num circuito turístico, raramente utilizável como transporte regular. As filas são longas, os veículos estão sobrelotados, o conforto é escasso e a funcionalidade urbana perdeu-se. A imagem resiste - a realidade, não.
Actualmente, circulam em Lisboa menos de 50 eléctricos históricos — uma frota que, no seu auge e nas suas mais diversas configurações, chegou a contar com cerca de 450 composições, que circulavam por 75 quilómetros de linha, hoje reduzidos a apenas 53. Apesar dos investimentos anunciados para a expansão da rede e a aquisição de novo material circulante, estes têm-se concentrado sobretudo nas ligações rápidas às periferias ou na interligação de novos bairros, como o Parque das Nações ou a Alta de Lisboa. As zonas históricas, por sua vez, continuam esquecidas - em parte porque os modernos eléctricos articulados não conseguem circular nos seus traçados apertados e acidentados, em ruas com forte declive ou curvas fechadas. O resultado é uma rede assimétrica, que sacrifica os bairros antigos em nome da expansão periférica.
Em 2027, a Carris prevê “remotorizar” os seus eléctricos históricos, reconhecendo que estes veículos “constituem ícones da cidade de Lisboa”. É uma boa notícia técnica, mas também uma rara oportunidade política. Para além de se trocar motores, estamos no momento de repensar a presença dos eléctricos na cidade do século XXI. E essa resposta deve ser ambiciosa, integrada e criativa — como foi a de Londres, embora com mais consistência e sem os seus erros.
Lisboa precisa de um novo modelo de eléctrico: com acessibilidade total, conforto térmico, desempenho adaptado às colinas e capacidade de resposta à procura - mas com a imagem emblemática dos modelos dos anos 1930. Um eléctrico moderno, mas com memória. Um veículo pensado para o futuro, mas enraizado na cidade real, das memórias e das suas gentes. Um eléctrico que se afirme como símbolo de um urbanismo mais inteligente e sustentável.
Essa nova frota permitiria libertar os eléctricos históricos “remodelados” para carreiras turísticas e criar novas linhas de bairro, reforçando ligações nas zonas altas, recuperando traçados antigos e oferecendo uma alternativa estruturante e simbólica aos autocarros. Seria, também, uma forma de reforçar a coesão entre centro e periferia, e entre o passado e o presente. A proposta não é apenas técnica: é cultural, social e política. E é urgente.
Lisboa, com os seus eléctricos amarelos, tem uma marca reconhecida no mundo inteiro. Ignorá-la ou descaracterizá-la seria um erro irreversível. A cidade não precisa de veículos genéricos que poderiam circular em qualquer parte do mundo. Precisa de transporte com carácter - e de políticas públicas que não cedam à uniformização global. O eléctrico é mais do que um meio de transporte: é um elemento de identidade colectiva e de projecção internacional.
A história não é um obstáculo à inovação. É a sua base. E este projecto podia - e devia - ser um contributo estratégico para a indústria nacional de caminhos de ferro, desafiando empresas, engenheiros, designers a criar um modelo, que conjugasse património, tecnologia e estética urbana. O futuro dos eléctricos de Lisboa pode ser um laboratório de modernidade com alma: veículos sustentáveis, confortáveis, estéticos — e inequivocamente lisboetas.
Preservar a imagem dos eléctricos antigos não é um capricho nostálgico. É uma afirmação estratégica. É entender que património e mobilidade não são esferas opostas. São faces da mesma cidade. E que as linhas que ligam os bairros também ligam gerações, memórias e valores.
Não se trata apenas de eléctricos. Trata-se do futuro e da singularidade de Lisboa.