Um antigo cirurgião francês de 74 anos que violou centenas de crianças durante um período de mais de duas décadas foi hoje condenado em França à pena máxima de 20 anos de prisão.

Joël Le Scouarnec foi considerado culpado de ter violado e abusado sexualmente de 299 crianças, depois de a acusação ter na sexta-feira pedido a pena máxima para o que descreveu como "um demónio de bata branca".

O ex-cirurgião já está a cumprir uma pena de 15 anos de prisão, por uma condenação em 2020 pela violação e agressão sexual de quatro crianças, duas das quais suas sobrinhas.

Este novo julgamento, na Bretanha, oeste de França, começou em fevereiro e expôs um padrão de abusos entre 1989 e 2014: a maioria das vítimas, cuja média etária era de 11 anos, eram doentes inconscientes ou sedados em hospitais na altura das agressões. Das vítimas, 158 eram rapazes e 141 raparigas.

Durante o julgamento, grupos de defesa acusaram as autoridades de saúde de inação, depois de terem sido notificadas, logo em 2005, da condenação de Le Scouarnec por posse de pornografia infantil.

Na altura, não foram tomadas medidas para suspender a sua licença médica ou limitar o seu contacto com crianças e o então cirurgião continuou a abusar de crianças em hospitais até à sua detenção, em 2017.

"Joël Le Scouarnec deveria ter sido o único no banco dos réus?", perguntou o procurador Stéphane Kellenberger durante as alegações finais.

"Poderia ter-se feito mais, as coisas podiam ter sido feitas de forma diferente, mesmo dentro das notórias camadas da burocracia francesa, em que as responsabilidades são tantas vezes passadas de uma autoridade para outra até que, eventualmente, essa responsabilidade se perde e atinge vidas inocentes", sublinhou Kellenberger.

Le Scouarnec confessou todos os abusos sexuais alegados pelas 299 partes civis, bem como outras agressões que já prescreveram.

Numa confissão chocante durante o julgamento, também reconheceu ter abusado sexualmente da sua neta - uma declaração feita em frente dos pais desta, visivelmente perturbados.

Já tinha sido condenado em 2005 por posse e importação de material de abuso sexual de crianças e condenado a quatro meses de pena suspensa.

Apesar dessa condenação, foi contratado como médico por um hospital no ano seguinte. As associações de proteção da infância que intervieram no processo como partes civis esperam que este caso contribua para reforçar o quadro jurídico de prevenção deste tipo de abusos.

Nem todas as vítimas se aperceberam inicialmente de que tinham sido vítimas de abusos sexuais. Algumas foram contactadas por investigadores depois de os seus nomes aparecerem nos diários de Le Scouarnec, nos quais este documentava meticulosamente os seus crimes. Outras só se aperceberam de que tinham sido hospitalizadas na altura depois de consultarem registos médicos. Duas das suas vítimas suicidaram-se alguns anos antes do julgamento.

A coberto de procedimentos médicos, o antigo cirurgião gastroenterologista aproveitava os momentos em que as crianças estavam sozinhas nos quartos de hospital. O seu método consistia em disfarçar os abusos sexuais como cuidados clínicos, tendo como alvo doentes pequenos, que dificilmente se lembrariam desses episódios.

Os cadernos em que descreve os abusos em linguagem gráfica tornaram-se centrais para o caso da acusação.

Apesar da gravidade das acusações, Le Scouarnec manteve-se calmo e tranquilo durante todo o julgamento.

"Eu não os via como pessoas, elas [as crianças] eram o sujeito das minhas fantasias. Com o decorrer do julgamento, comecei a vê-los como indivíduos, com emoções, raiva, sofrimento e angústia", disse o arguido ao tribunal, confessando que o seu primeiro ato de abuso sexual ocorreu em 1985, quando violou a sobrinha de 05 anos.

Prevê-se um terceiro julgamento nos próximos anos, na sequência da admissão de novos crimes durante este julgamento, entre os quais mais abusos sexuais envolvendo a sua neta.