Por estes dias, nasceu mais um bebé numa ambulância. Em 2025, já são 40 bebés que nasceram fora das maternidades.

Enquanto isso, o ministério da Saúde, liderado por Ana Paula Martins, parece ter assumido o papel de pára-raios do Governo de Luís Montenegro: absorve o desgaste, ocupa-se com discursos de conciliação, mas deixa passar — silenciosamente — um plano de fragilização do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Hoje, o acesso à saúde tornou-se, em muitos casos, uma questão de sorte geográfica.

Mas esta não é uma tragédia acidental. É consequência direta de um desmantelamento gradual — e estrutural — do SNS. Sob o pretexto de “reforma”, o Governo de Luís Montenegro tem promovido medidas que favorecem, de forma crescente, a transferência de recursos públicos para o setor privado. Veja-se o caso recente do Hospital de Braga, onde foram adjudicados milhões de euros em contratos de outsourcing para Oftalmologia. Um exemplo entre muitos.

São dezenas os hospitais públicos que funcionam com serviços externalizados, suportados por contratos com valores elevados e pouca transparência. Este modelo, com raízes nas antigas Parcerias Público-Privadas (PPP), continua a drenar recursos do SNS para operadores privados.

Se seguirmos a tendência atual, a conclusão é clara: o investimento na saúde tem sido canalizado para o sector privado, financiado com dinheiros públicos. Em vez de se interessarem pela gestão direta de unidades públicas — um caminho mais complexo, sujeito a concursos e fiscalização — os operadores privados poderão, de forma mais ágil, receber doentes do SNS e serem pagos por isso. Um modelo simples, eficaz e altamente lucrativo.

Não se trata de uma leitura alarmista. São factos que têm vindo a ser revelados por diversas formas de escrutínio: relatórios técnicos, sessões parlamentares, denúncias de profissionais e também por reportagens de investigação. Todos esses instrumentos são essenciais numa democracia saudável. O jornalismo tem ajudado a dar visibilidade a casos como o do INEM, do Hospital de Santa Maria, de Braga, dos partos em ambulâncias ou dos sucessivos encerramentos de urgências. Sem essa exposição, muitos destes episódios poderiam ter passado despercebidos à opinião pública.

Entretanto, o Governo de Montenegro parece avançar com um modelo de reorganização das urgências obstétricas: concentrá-las, encerrar unidades locais, mobilizar médicos de forma centralizada. E, para responder à crise iminente, anuncia agora a criação da nova “Unidade de Combate à Fraude”. Mais uma estrutura adicional, cujos contornos e eficácia permanecem por esclarecer. É preocupante que tudo isto se faça sob o argumento da modernização. Termos como “eficiência” ou “liberdade de escolha” continuam a ser usados como justificações para uma desresponsabilização progressiva do sector público.

Reformar a saúde é urgente, mas isso exige reforçar os quadros do SNS com médicos e demais profissionais de saúde, não contorná-los. A estratégia atual parece apontar noutra direção: transformar a saúde pública num negócio privado. E, infelizmente, os sinais mostram que está a funcionar.

Os médicos mantêm as soluções concretas em cima da mesa: valorização da carreira médica, salários justos, condições de trabalho dignas, sem perda de direitos e com respeito por quem garante o SNS todos os dias. Sem médicos no SNS, não há reestruturação que funcione nem um verdadeiro SNS para a população. É tempo de escolher entre continuar a desmantelar ou começar, finalmente, a reconstruir.