
Os Médicos Sem Fronteiras (MSF) condenaram ontem o "tratamento desumanizante" de civis durante a distribuição de ajuda humanitária na Faixa de Gaza por uma fundação apoiada pelos Estados Unidos e Israel, que gerou situações de caos e desespero.
"Parece ser um estratagema cínico para simular o cumprimento do direito internacional. Na prática, usa a ajuda como ferramenta para deslocar pessoas à força, como parte de uma estratégia mais ampla de limpeza étnica na Faixa de Gaza e justifica a continuação de uma guerra irrestrita", acusou o secretário-geral dos MSF.
Christopher Lockyear destacou que "o uso de ajuda como arma pode constituir um crime contra a humanidade" e apelou para um "cessar-fogo imediato", bem como para a abertura de todas as passagens de acesso de mantimentos para a população civil.
Segundo o responsável dos MSF, esta "abordagem perigosa e imprudente" leva a que os mantimentos sejam distribuídos em áreas "onde as forças israelitas optam por concentrar a população civil", resultando na negação do acesso à ajuda aos mais vulneráveis, como idosos ou pessoas com deficiência.
Os civis, que estão "privados de comida, água e assistência médica há quase três meses", estão confinados dentro de vedações enquanto aguardam a escassa ajuda que entra no enclave palestiniano "no meio do caos" causado pelos incidentes, lamentou.
"A alegação de que este mecanismo defeituoso e sem princípios é necessário para impedir o desvio de ajuda é falsa", acrescentou Lockyear, em alusão à justificação de Israel de que pretende evitar que os bens destinados à população caiam nas mãos do grupo islamita palestiniano Hamas.
O secretário-geral dos MSF disse que, na verdade, o sistema humanitário está a ser sufocado por restrições impostas pelas autoridades israelitas, que bloqueiam a passagem de camiões "imediatamente após atravessarem a fronteira" com a Faixa de Gaza.
Esta situação de ajuda insuficiente, argumentou, conduz a "situações de necessidade e desespero" e a que os civis sejam levados a pilhar os camiões, como "consequência de uma sociedade à beira do abismo, com o seu tecido social dilacerado pela violência e privação implacáveis".
O resultado, disse ainda, são "mais mortes e ferimentos evitáveis ??e a incapacidade de prestar ajuda respeitando a dignidade das pessoas", numa estratégia que considera mais ampla de "reforçar uma narrativa unilateral", de que "a única forma de prestar ajuda é militarizá-la".
As Nações Unidas alertaram hoje que a Faixa de Gaza "é o local com mais fome no mundo", ameaçando a totalidade da população, segundo Jens Laerke, porta-voz do escritório de coordenação de assuntos humanitários (OCHA), ao questionar o plano israelita de assistência ao enclave.
A ONU e outras organizações humanitárias rejeitam o novo sistema de distribuição de ajuda, afirmando que não será capaz de satisfazer as necessidades dos 2,3 milhões de habitantes e permite que Israel utilize os alimentos como instrumento de controlo da população.
Em causa, está a concessão da distribuição da ajuda à Fundação Humanitária de Gaza (GHF), criada nos Estados Unidos sem a aprovação das Nações Unidas, ao mesmo tempo que a logística de abastecimento da ONU e de outras organizações é severamente condicionada por Israel.
Ao longo da semana, foram relatadas várias situações de desespero e descontrolo em centros de distribuição de ajuda da GHF, com a ocorrência de episódios de multidões dispersadas a tiro.
A organização, composta por antigos militares norte-americanos e empresas de segurança privadas, negou hoje relatos de mortes e caos nos pontos de distribuição, contrariando versões das autoridades locais, de outras entidades humanitárias e testemunhos de habitantes.
O Exército israelita iniciou há uma semana e meia uma nova operação terrestre e aérea no território, após ter quebrado em meados de março o cessar-fogo em vigor com o Hamas.
O início desta campanha militar coincidiu com o levantamento do bloqueio que se mantinha há mais de dois meses e meio à entrada de ajuda humanitária à população do enclave, que já enfrentava o risco de fome, segundo as agências da ONU.
O conflito em curso foi desencadeado pelos ataques liderados pelo grupo islamita palestiniano Hamas em 07 de outubro de 2023 no sul de Israel, onde fez cerca de 1.200 mortos, na maioria civis, e mais de duas centenas de reféns.
Em retaliação, Israel lançou uma operação militar na Faixa de Gaza, que já provocou mais de 54 mil mortos, segundo as autoridades locais controladas pelo Hamas, a destruição de quase todas as infraestruturas do território e a deslocação forçada de centenas de milhares de pessoas.